por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



segunda-feira, 7 de maio de 2012


O Crato, a cana, o algodão e o arame farpado – por José Almino Pinheiro

Que aconteceu com o Crato?  A Princesa do Cariri, não faz muito tempo, era a segunda cidade em importância do Ceará.  Usando os superlativos tão ao nosso gosto, se dizia que o Crato concentrava os maiores e melhores colégios da região, tinha dois grandes seminários, uma das primeiras hidroelétricas do nordeste, a maior concentração de fábricas de algodão da região, o município era o maior fabricante de rapadura do nordeste, tinha quatro cinemas, duas emissoras de rádio, e muito mais. 

Segundo o trabalho “Resgatando a História de uma cidade média: Crato Capital da Cultura” dos autores João César Abreu Oliveira e Roberto Cruz Abreu, publicado na Revista Historiar, ano II, n. I (2010), o município do Crato no início dos anos 50 tinha 46.408 habitantes dos quais 24.786 na sede. Contava, entre outros, com 28 estabelecimentos atacadistas, 323 varejistas, 413 indústrias. No mesmo trabalho consta que o Crato, na década de 90, contava com 90.519 habitantes, sendo na cidade 57.714. Contava com um total de 209 indústrias, com destaque para a implantação da Grendene. Ainda segundo os autores do estudo, a cidade hoje está com cerca de 131.000 habitantes e nesse período desapareceram 204 indústrias.  

O jornal O Povo, on line, do dia 31.10.2011, no caderno de economia, divulgou a relação dos 15 municípios do estado por importância econômica: 1. Fortaleza, 2. Maracanaú, 3. Juazeiro do Norte, 4 Caucaia, 5. Sobral, 6 Eusébio, 7 Horizonte, 8. Maranguape, 9. Crato, 10. São Gonçalo do Amarante, 11. Iguatu, 12. Aquiraz, 13. Itapipoca, 14. Limoeiro do Norte, 15. Pacatuba. O que chama a atenção é que apesar do aumento populacional, em pouco mais de 50 anos, a cidade do Crato cai do segundo para o nono lugar no ranking das cidades do estado. Quando se observa o comportamento das administrações municipais do período, não fica difícil imaginar o que aconteceu com o Crato. Como é mais fácil acusar os outros, do que reconhecer a própria incompetência, sempre surgem desculpas de perseguição política e econômica. Quase sempre os governadores levam a culpa por retaliar o Crato. Mas com uma pequena olhada nos informativos do governo e câmara legislativa, constatamos a quase ausência de projetos para a cidade. Sem projetos específicos, claros e viáveis, realmente fica difícil que alguém de fora da cidade, sem informações, ofereça soluções ou financiamento para executá-las.  

Vale a pena dar uma olhadela em uma atividade econômica regional interessante que se aprimorou ao longo do tempo e depois entrou em decadência e logo foi abandonada. Não houve nenhuma preocupação de se entender o que ocorria, para que, com esse conhecimento, se procurassem alternativas ao grande investimento financeiro e humano efetuado nessa atividade em tantos anos.

A região do Cariri, com sua geografia, é formada pela grande serra e estreitas faixas de terras férteis que acompanham os cursos da água das fontes, onde se desenvolvia a agricultura permanente, como a cana de açúcar, hortaliças, fruteiras, etc. A outra parte, grandes áreas de terra seca, os ariscos, eram usados principalmente para o plantio de algodão e capim. Na época das chuvas, nesses ariscos, se plantava também culturas de ciclo curto como milho e feijão. No processo de divisão dessas terras, existia a particularidade comum em que a principal fronteira do novo sítio era o rio ou riacho, as outras duas principais fronteiras eram quase perpendiculares ao curso da água. Desta forma, as propriedades dispunham de dois tipos de terras: as margens dos riachos, úmidas e férteis e a parte mais acima, os secos ariscos. Com esse arranjo fundiário peculiar, foi possível que os proprietários desses sítios desenvolvessem uma cadeia de produção que na realidade foi um dos principais motores do desenvolvimento econômico do Cariri.

Tomando como ponto de partida o final da estação das chuvas começamos o processo. Concluídas as colheitas das culturas de ciclo curto, começavam as colheitas do algodão e da cana de açúcar. Com a moagem da cana vinha a respectiva produção de rapadura e cachaça. Das três atividades, essas duas, eram as principais fontes de renda agrícola dos sítios da região, o algodão e a cana, resumidamente descritas acima, que têm maior visibilidade.  A terceira fonte de renda, a pecuária, tão ou mais importante que as outras passa quase despercebida.

Com o arranjo fundiário, a produção agrícola dos sítios e a grande serra, foi possível aos proprietários dos sítios possuírem e manterem  grande quantidade  de gado, e o que é importante:  a baixo custo. O tamanho do rebanho de cada proprietário era determinado pela capacidade do seu sítio em produzir alimentos para o gado por pelo menos 5 ou 6 meses. A alimentação dos animais na época seca consistia, basicamente, nas sobras das culturas de ciclo curto deixadas naturalmente nas roças (milho e feijão), do capim existente na área seca e principalmente das sobras da moagem da cana de açúcar. O gado ainda prestava um bom serviço gratuito aos seus donos, pois soltos nos ariscos, faziam a poda dos arbustos do algodoeiro, comendo suas folhas ricas em proteínas.  O plantio intensivo de capim em pequenas áreas úmidas destinava-se principalmente às vacas produtoras de leite de quem as possuía e não para o grosso do rebanho.

A chegada das chuvas deveria coincidir com o final das colheitas e da moagem da cana dos sítios onde já fatalmente rareava a comida para os animais. O gado, então, era simplesmente levado e solto à sua própria sorte em cima da serra, o grande planalto da do Araripe. Terras públicas, reservas da união, onde por princípio todos tinham o direito de usar. Carente de água, mas com pequenos arranjos em forma de “barreiros” para acumular água das chuvas era possível dispor de água e manter o gado. Em cima da serra, existe o capim nativo e grande variedade de plantas onde os animais soltos, andando livremente, podiam fazer a sua dieta.

A temporada acabava com a chegada da estiagem. Os barreiros começavam a secar inviabilizando a permanência do gado. Com a falta das chuvas, os proprietários de gado enviavam seus vaqueiros para recolher o rebanho, o que era feito indistintamente. Para facilitar o trabalho, os animais líderes naturais do rebanho, e as fêmeas, portavam chocalhos, avisando sua presença aos ouvidos atentos dos vaqueiros que os recolhiam e os encaminhavam para antigas clareiras abertas no “meio” da serra, conhecidas como os “Cá te espero.”  Em dias predeterminados, geralmente de algum santo, o “Cá te espero” da vez, cheio de animais, vaqueiros, caboclas, barracas de bebida, comida, era preparado para a noite que  passava a ser dos sanfoneiros,  e o rela-bucho esquentava os dançarinos do frio da serra. Pela manhã começava a separação do gado, de acordo com os símbolos da comarca e marca individual de cada “coronel”, marcados com ferro em brasa nos quadris dos animais. Era a ocasião de grandes negócios, rebanhos eram vendidos, transferidos e os coronéis levavam de volta para casa apenas o gado que o interessava.  Novo ciclo começava.

Com o declínio do algodão e a chegada do arame farpado, barato, vendido com financiamento a juros irrisórios, para ajudar na sustentação financeira da recém instalada siderúrgica, começou uma espécie de suicídio, com os próprios coronéis tomando posse ilegalmente de terras em cima da serra e cercando-as com o tal arame. Com as cercas e consequente limitação das áreas, o gado fica sem condições de andar e procurar sua própria comida.  As consequências são imediatas, os donos de engenho, de repente são obrigados a reduzir drasticamente seus rebanhos.

Assim, melancolicamente acaba um ciclo de produção engenhoso e barato. De forma que os sítios, sem fontes de renda compatível para seus donos, começam a desmoronar, e a antiga produção agrícola é substituída pela especulação imobiliária selvagem, sem controle algum, que não leva em conta os cursos d’água, as terras férteis nem produção agrícola de qualquer ordem. Tudo isso sob os olhares complacentes das autoridades.

Este foi o fim das três principais fontes de renda dos sítios: o algodão a pecuária e a rapadura. A rapadura, o açúcar bruto da cana de açúcar é um alimento cobiçado, importante e antigo, que chegou a nós pelas mãos dos árabes. O interessante é que no decorrer desse tempo, uns 700 anos, as regiões produtoras de cana, na medida em que se desenvolviam, transferiam para outras mais pobres a produção de açúcar. Descobriram que se o açúcar em geral é um ótimo alimento para humanos também é para animais. Com essa observação e a preocupação de sempre se adaptar às mudanças, não perder os investimentos já realizados e, quando possível, agregar valores a seus produtos, muitos países aumentaram os plantios de cana. O excedente da produção da cana ou dos subprodutos da fabricação do açúcar é destinado para ração animal.

O balanço financeiro não é complicado, não precisa elaborações econômicas; observando apenas a prateleira da mercearia ou a bomba de combustível do posto, constatamos que um quilograma de açúcar custa cerca de R$ 2,00 e um litro de álcool R$1,50, enquanto um quilograma de carne custa em média R$ 20,00. A cana de açúcar no Brasil, de forma geral, por acaso o único, diferentemente dos demais países produtores de cana, optou por fabricar álcool para carro em detrimento de comida.

Alguns países, a Holanda, por exemplo, importa grande quantidade de melaço para compor a ração bovina e suína de seus rebanhos. Em Cuba, o subproduto da fabricação do açúcar é usado na fabricação de energia elétrica, de rações, indústria química e farmacêutica. As usinas de açúcar cubanas ainda têm a obrigação de fornecer a alimentação para as escolas, hospitais e outras instituições que estão em sua área de influência. Nos do Cariri, nesse meio tempo, simplesmente não sabíamos o que fazer. 

3 comentários:

Stela disse...

Seria tão bom que os prefeituráveis do Crato lessem este texto de José Almino Pinheiro.
Quem sabe colheriam ideias para seus projetos de governo.

Vamos lá Zé Almino, escreva mais que a gente vai postando aqui.

Carlos Eduardo Esmeraldo disse...

Caríssimo Zé Almino.

Li o seu texto com redobrado interesse e achei-o de um conteúdo muito equilibrado e uma análise precisa do que vem acontecendo com nosso município. Confesso que saí enriquecido após a leitura desse texto. Seria bom que todos os cratenses dele tomassem conhecimento.
Meus parabéns e um grande abraço!

Ana Paula disse...

Querido Zé Almino,

Muito bom o seu texto. Me parece que ele extrapola os limites geográficos do Crato! Afinal, vazão de produto industrializado que muda a história toda do desenvolvimento de um local... acho que conheço este filme! por estas bandas do sudeste do país é o nosso querido... automóvel! que retificou e canalizou rios e córregos, espalhou asfalto impermeabilizando o solo, entupiu as vias terrestres e respiratórias e nos deixou parados... no trânsito. E as nossas lideranças políticas defendem a indústria automobilística com unhas e dentes, havendo eminentes políticos paulistanos afirmando na imprensa que o que atrapalha o nosso trânsito, veja você, são os ônibus!
Seria engraçado se não fosse triste.
Parabéns, Zé Almino, pela retomada da história do Crato num texto singelo e repleto de profundidade.
Saudações desde SP!