por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O sapoti do padre Lauro


Era um beco estreito, angustiado entre muros de casas que se estendiam, ao comprido : poucas portas ousavam desembocar naquela curta vielazinha, sem jardins, sem quintais visíveis, sem pomares alcançáveis. Mera e exígua ponte a unir, meio a contra gosto, a exuberância da Praça da Sé , à voluptuosidade pouco sinuosa da Rua das Laranjeiras. À noite, então, o opressivo e cúmplice aconchego do beco – sem olhos perscrutadores de portas e janelas --- como que convidava os casais para os afetos proibidos, os encontros escusos e outras necessidades igualmente incontroláveis e prementes. Ainda sem energia elétrica , o beco era quase uma contravenção arquitetônica, uma fuga à cansativa linearidade geométrica das avenidas vizinhas, um portal de acesso a outras dimensões e outras realidades. Uma quebra àquela fina e eternamente cultivada hipocrisia estampada na sociedade que desfilava imperial na praça, orava sem convicção na Igreja da Sé e se deliciava nas comerciais ruas que oprimiam o bequinho de todos os lados. Muro contra muro , tijolo em vis-à-vis a tijolo e cal, calçadas estreitas e calçamento irregular, o beco não tinha maiores atrativos: aprestava-se o passo rápido para, como num canal de parto, fugir do angustiante trajeto. A insípida paisagem, o desértico e insulso percurso, no entanto, quebrava-se tragicamente, quando já se divisava a Rua das Laranjeiras. Ali, na lateral do casarão do Padre Lauro Pita, um sapotizeiro frondoso varava impetuosamente a altura do muro e da casa e esparramava seus galhos por sobre o beco, como um pinto fendendo a casca do ovo, em busca de luz.

O verde permanente das folhas imprimia uma cor especial à mesmice repetitiva da aquarela do beco, dividida entre o branco da cal dos muros e o cinza dos paralelepípedos. Em tempos de safra do sapoti, então, o beco se transformava. Os pássaros entoavam loas à delícia dos frutos gigantes e dulcíssimos. Os morcegos à noite empreendiam vôos rasantes em torno dos galhos, como uma esquadria da fumaça em dia de festa. E embaixo, a algazarra dos meninos das ruas próximas, de água na boca, esperando, pacientemente, a queda dos frutos mais maduros, tentando alcançá-los ainda no ar, antes que a gravidade os fizesse, num som surdo e grave, se espedaçarem no chão. Na janela , o padre ainda resmungava : um pouco pelo bulício das crianças, um tanto pelo desconforto de perceber que a árvore plantada no quintal terminasse por dar frutos no pomar alheio.

Hoje os meninos cresceram, o beco iluminado já não é mais o mesmo: perdeu seus mistérios e seus fantasmas. O casarão e o sapotizeiro foram mastigados pelos dentes inexoráveis dos minutos e das horas. E o padre silente, já não resmunga. Mas mesmo assim, os meninos, espalhados pelo mundo, enfrentando a cruciante travessia de outros becos, ainda param e olham para cima esperando a queda possível, mas incerta do sapoti . Sabem que ele pende agora de outras árvores , mas ainda mantém o inesquecível sabor daquele fruto da infância e que precisa ser pego antes que a gravidade da vida o faça se esparramar, inutilmente, na calçada estreita .


J. Flávio Vieira

8 comentários:

socorro moreira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
jflavio disse...

Ainda hoje sinto o gosto do sapoti, Socorro e o Pe ficava danado com nossa roubalheira, nem imaginava que o fruto roubado tem um sabor todo especial...

Ulisses Germano disse...

Senhor Doutor Zé Flávio
O seu texto é pura música

Ulisses Germano disse...

Desculpe o meu precário senso topográfico: esta é uma foto antiga do Beco do Padre Lauro?

jflavio disse...

Abraço ao Ulisses poeta cratense de todas as horas. a foto é de um beco, mais estreito que aquele do Padre Lauro e parece com os de Goiás Velho que inspiraram Cora Coralina

socorro moreira disse...

O texto é uma viagem literária. Zé Flávio eternizou mais uma prosa poética!

jflavio disse...

O texto tinha sido induzido há uns dois anos pelo Ulisses ( acho que ele nem lembra mais) e, como é tão comum , ficou hibernando por tanto tempo, até sobrenadar agora perto do natal.

Ulisses Germano disse...

Meu caro Zé Flávio, minha memória foi avivada. Há cinco anos que eu passo todos os dias pelo Beco do Pe. Lauro. Fiz música para este Beco, iniciei um cordel com a Bastinha (ainda hibernando)o sapotizeiro mais famoso do Crato! Presenciei a derrubada do sapoti do Pe. Lauro... disseram que o pé estava com "o miolo podre" e que ia cair. A história dessa "pé de pau" me comoveu! até pouco tempo eu tinha um lasca desse afamado pé pejado de poesia! é isso um beco e um pé pejado de poesia! Por isso o que você escreveu é tão primoroso e emocionante!