por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



terça-feira, 30 de agosto de 2011

Beco sem saída- por Geraldo Ananias


G.1 Beco sem saída


A coisa mais importante que um pai pode fazer pelos seus filhos é amar a mãe deles. (Autor desconhecido)



Janeiro de 2007, estava de férias com a família no sítio Almécegas, Crato-CE, na casa de minha mãe, no mesmo local onde vivi dos sete aos dezenove anos.
Conversava animadamente com minha velhinha querida, lá na palhoça, localizada ao lado da casa, sobre os saudosos tempos que não voltam mais.
Desse local, aliás, ainda se pode ter uma vista privilegiada, pois o sítio se encontra encravado na subida do sopé da Serra do Araripe a apenas sete quilômetros do centro da cidade.
Repentinamente, mamãe se lembrou de me fazer uma surpresa. Foi pegar meu quepe velho, que fazia parte do uniforme de gala do Colégio Diocesano.
— Olhe aqui seu quepe. Guardei por muitas décadas. Está um pouco amassado e estragado, mas é só mandar consertar lá no Crato que ele fica novinho em folha.
Recebi-o com surpresa e muita alegria. Ao abraçá-la e beijá-la, disse-lhe:
— Que lembrança maravilhosa, mamãe! Só a senhora mesmo...
No outro dia cedinho estou eu lá na oficina de seu Zé de Tó.
— Ó de casa!
— Ó de fora!
— Bom-dia, é aqui o ateliê de seu Zé de...
Não terminei a frase, um senhor com mais de setena anos, falante pra caramba, gentil, perspicaz, com jeitão de pessoa brincalhona, me interrompeu dizendo:
— ... de Tó, completou. Sou eu mesmo, meu filho. O que o moço deseja?
Mostrei-lhe o quepe e perguntei se poderia consertá-lo.
Ao tomar o objeto nas mãos, respirou fundo e, antes de responder à minha pergunta, num saudosismo desmedido, focado nas boas lembranças, murmurou:
— Quepe do Colégio Diocesano. Velhos tempos! Épocas boas aquelas.
Mostrou o boné às pessoas que se encontravam no recinto, aduzindo que fazia anos que não via um semelhante àquele; que aquilo representava um passado saudoso, pois o uniforme de gala do mencionado educandário, segundo ele, já não existia havia décadas; que, dos belos desfiles do Diocesano nas datas comemorativas, principalmente Sete de Setembro, só restavam distantes lembranças. E começou a me fazer uma série de perguntas sobre família, local onde morava, época em que havia estudado no Colégio Diocesano e por aí afora.
Em seguida, disse-me que consertaria o quepe até o dia seguinte.
Fiquei contente com a conversa daquele simpático senhor. E não posso negar que, não obstante o saudosismo, não era todo dia que se teria a oportunidade de ficar frente a frente com um contemporâneo agradável como ele e, ainda, que conhecia, como ninguém, a história do Crato da década de 60.
Depois de alguns minutos de prosa, ao despedir-me do “mestre-artesão-microempresário”, fui logo dizendo que, quando viesse apanhar o utensílio, iria trazer, para conhecê-lo, minha esposa e um casal de amigos que viera comigo passar férias na região.
Ele sorriu gentilmente e disse: “Traga mesmo, será um prazer para mim!”
Cheguei a casa e contei tudo animadamente à minha mulher. Ela ficou por demais curiosa e confirmou a intenção de conhecer pessoalmente o seu Zé de Tó. O casal amigo manifestou idêntico intuito.
No outro dia cedinho, chegamos lá a reca toda: eu, minha mulher, o casal amigo e, de quebra, um cunhado. Lotação completa do carro. Ao pararmos próximo à calçada do estabelecimento, fui logo gritando, muito empolgado:
— E então, meu velho amigo Zé de Tó — o entusiasmo foi tanto, que o homem já tinha virado meu amigo repentinamente — o quepe está pronto?
— Prontinho da Silva , meu amigo, veja aqui!
Mostrou-me o bichinho bem novinho, até parecia que tinha acabado de sair da fábrica. O serviço tinha sido de primeira, arretado mesmo, coisa de caba macho.
Meus olhos brilhavam de felicidade ao ver o quepe consertado, parecia novinho em folha. Imediatamente, sem miséria alguma — pelo menos para o caso concreto — meti a mão no bolso e paguei o dobro do preço combinado. Afinal, o serviço tinha saído muito bom, melhor que a encomenda. E nunca havia ficado tão satisfeito com um trabalho o quanto estava com aquele.
Ele ficou muito feliz, desmanchou-se em gaitadas e a todo custo queria retribuir a gratificação extra recebida. Foi logo cumprimentando todos os que me acompanhavam, antes mesmo que eu os apresentasse. Ofereceu água, distribuiu cafezinho (só tinha duas xícaras)... Começou a puxar conversa sobre os mais variados assuntos, sem tirar de foco o tradicional Colégio Diocesano, meu dodói. Eu, contente, o ouvia atentamente. Cheguei até mesmo a pedir atenção dos que me acompanhavam para as histórias de meu amigo (da onça), acenando para que não o interrompessem. E todos ficamos boquiabertos diante daquelas interressantes e variadas narrativas sobre o Crato de meu tempo.
No entanto seria impossível imaginar o que o camaradinha viria a abordar logo em seguida. Repentinamente, sem mais nem menos, mudou o rumo da prosa e, de olhos bribados para meu lado (era verdadeiro artista), parecendo haver recebido entidade estranha, saiu com esta pérola:
— Ei, conterrâneo, como você muito bem sabe, naquela época o Crato era famoso por ter os melhores cabarés do Cariri. Naquela região acolá, por exemplo (apontou pra o lado do gesso ), havia cabarés maravilhosos. E eu era dono do melhor deles, e citou o nome. Então...
Ficamos todos atrapalhados com o rumo da conversa, e ele não parava de falar. Ficava a cada momento mais e mais empolgado. E tome besteira. Pois não é que o camarada chegou ao cúmulo do absurdo de avançar mais ainda o sinal e dizer isto para mim, alto e bom tom, para que todos pudessem ouvir nitidamente:
— Aquela tua turma adorava meu cabaré, não era? Eita cabinhas danados! Concluiu.
Apesar de não ter culpa alguma na história — pois efetivamente jamais tinha ido a esse local por ele citado — a pergunta fora tão despropositada e imprevista, que me deixou zonzo, meio abirobado . Em vez de eu ter contraditado, imediatamente, o suposto fato, comecei a gaguejar, feito um baixa da égua . Aí não prestou não. Minha mulher começou a me cubar com olhos fuzilantes, enquanto que os demais, ali presentes, caíam na gargalhada.
Nesse momento, me dei conta de que precisa reagir imediatamente. Não sei como, refiz-me de repente e, mostrando a “garra dos inocentes”, repliquei com veemência:
— O Senhor está equivocado, senhor José. E já passou, e muito, dos limites. Nunca fui a cabaré algum aqui, muito menos ao seu.
Notei que fui convincente, pelo menos para minha mulher. O fogo da inocência felizmente tinha posto por terra a funesta e injusta “acusação”. E ela gostou do que ouviu de mim. Gostou tanto que esboçou, mesmo que pálido, um sorriso de contentamento, enquanto balançava a cabeça em sinal de aprovação pelo que eu dissera. Ainda bem.
Seu Zé de Tó não se intimidou nadinha. Parecia que estava com a bexiga preta nos couros. E ainda teve a ousadia de sair com outra presepada igualmente picante, descabida e indecorosa:
— É, mas havia alguns alunos que deixavam tudo fiado, e até hoje me devem. Deram cano em mim.
Abriu um caderno velho amarelado e completou:
— Está tudinho anotado aqui. Tem um monte de doutor já formado, morando fora, que me deve até hoje. E vou ver se o nome deste meu conterrâneo está aqui nesta lista. Pere aí um pouquinho.
Daí o gaiato de meu amigo, querendo fazer gracinha também, não perdeu a oportunidade. Juntou-se a seu Zé de Tó e começaram a procurar meu nome na antiga lista dos devedores do cabaré. Parecia que haviam combinado alguma coisa para me assustar. De repente, meu companheiro de viagem gritou entusiasmado como se tivesse efetivamente encontrado o que procurava e, apontando para um nome no caderno, virou-se para minha mulher e falou:
— Encontrei, tá aqui o nome dele...
A essa altura, a temperatura reinante no local já havia extrapolado, e muito, todos os limites. Eu havia perdido o fôlego, a paciência, e já não tinha certeza mais de nada. Foi quando, felizmente, e para alívio meu e de minha mulher, o velho Tó decidiu dar um basta naquela situação vexatória. Com a cara mais lisa do mundo, deu um sorriso maroto, chamando a atenção dos presentes, e disse em tom professoral:
— Gente, isso tudo não passou de uma pegadinha que fiz para vocês. E, então, gostaram? Queria ver a reação dos amigos e, principalmente, das comadres, arrematou.
Finalmente, concluiu dizendo que fazia costumeiramente esse tipo de brincadeira para atrair, divertir e agradar os visitantes e os amigos.
Muy amigo!

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