por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

O Baião da Serra Grande - José do Vale Pinheiro Feitosa

A música de montanha. Assim como “eu nasci naquela serra, onde a lua faz clarão.” 

Tristeza do Jeca compositor paulista Angelino de Oliveira - cantada por Caetano e Maria Bethânia

Ou “na Serra da Mantiqueira, sob a fronde da mangueira, sentadinha no seu banco, lá na encosta do barranco, mãe Maria vai sonhar."  

Na Serra da Mantiqueira - composição de Ari Kerner - cantada por Gastão Formenti.

Ou ainda “se deus soubesse da tristeza lá serra mandaria lá prá cima todo o amor que já terra.

No Rancho Fundo - Ary Barroso e Lamartine Babo - cantada por Sílvio Caldas

Isso tem muito das músicas dos sertões. Dos sertões das gerais. De perder o passo e a notícia nas quebradas da Serra do Mar. Internar-se no continente e desaparecer de uma era, para surgir como a “netarada”, dezenas de anos depois. Vindo conhecer o mar.  

Lá em cima da serra se vive. Na cordilheira. Mais perto das nuvens e a miúdo quando o pó do café se despeja nas borbulhas da água fervente, as nuvens entram de porta a dentro. Entram com tanta força que o fogão perde o sentido dos olhos e se apresenta apenas como quentura na fria madrugada.

O clima das serras. A luz serrana. As noites que sustentam o piso do mundo por milhões de fios dourados suspensos nas estrelas. O galo que não é apenas saudade, é a alegria de tornar a enxergar os grãos que surgem nas ciscadas de suas unhas. A serra é a aventura dos vales, nas estes por germinarem cidades, vivem roubando os fios que nos faz rosário.


E somos contas soltas no tempo de inventar moradas aqui na serra. A serra deixada só neste Baião da Serra Grande. 

Baião da Serra Grande - de Fred William, tocada por ele que tinha o nome real de Manoel Xisto

Aqui Baião da Serra Grande cantada por Emilinha Borba

A música também foi gravada por Mário Zan, do qual senti um respeito profundo num velho sanfoneiro lá da localidade dos Grossos em Paracuru. Seu Pedro Barros. Já com um pé nos passos finais da vida. Acabei de chegar de lá e continua ativo. E tem outra interpretação do sanfoneiro Zé Béttio que é muito boa. 

Lá no meu pé de serra - José do Vale Pinheiro Feitosa


Zé, Luiz, Santana, Socorro, Zabelê, Biô, Pinga, Fila, onde é que nossas substâncias estão e para onde elas vão? Sempre estou contando as sementes das vagens a perguntar se estas substâncias são o ovo do chão ou a fecunda obra das nossas imaginações.

E sei que a semente é algo tão evidente que esta dúvida não deveria existir. Mas é que somos flor do tempo. Brotamos e murchamos. E tudo que é divino, porque assim entendemos, logo pensamos seja todo o universo, que se alue o tempo todo, mas nunca deixa de abraçar além do tempo.

Meu constitutivo essencial. Sabe gente. Estas questões ilusórias, crentes ou radicais, agradam por mover emoções, orações e sentenças. Mas fica sempre aquele grão inexplicável e onde estão nossas substâncias e para onde elas vão?

Bom, vamos fazer um exercício qualquer. Jamais do nosso peito uma canção falando da morada no alto da serra. Lá no topo do mundo como os serranos se acham. Nós não!  


Nós somos é pé de serra. Só vamos ao topo para apanhar piqui, descascar abacaxi e beber um suco de maracujá peroba.  






quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A "coisa" vem de longe - José Nilton Mariano Saraiva

Desde a derrota em 26.10.14, quando foram atropelados por um transatlântico de votos, a “tucanalhada” – à frente o aloprado e apoplético “playboy do Leblon” (Aécio Neves) e o gagá FHC - insiste em instituir uma espécie de terceiro turno da eleição presidencial.

Só que o mote usado - que os malfeitos na Petrobrás começaram em 2003 com a ascensão do PT ao poder - é no mínimo cínico e desonesto. O próprio ladrão-delator Paulo Roberto de Souza, funcionário de carreira da Petrobrás desde 1978 (e que começou a ocupar cargos de Diretoria ainda na gestão FHC), foi muito claro em depoimento à CPI, ontem, ao afirmar peremptoriamente que desde o governo Sarney, passando pelos governos Collor, Itamar e FHC, a prática era corriqueira naquela estatal. E já que emprestam tanta credibilidade para o que ele diz, atenção: segundo o próprio, em outras instituições governamentais a “coisa” também vigora e... no Brasil todo.

O detalhe, e todo mundo já tá careca de saber, é que naquela época não havia disposição para se investigar, não havia coragem de cortar na própria carne, resultando que tudo foi varrido para debaixo do tapete, daí o monstro ter criado musculatura.

Portanto, querer fazer crer que o que acontece hoje trata-se de uma “novidade”, não cola: é sim, uma lamentável “recorrência”, mas que agora tende a ser enfrentada, depois de uma lei específica sancionada pela Presidente Dilma Roussef, que permite alcançar corruptos e corruptores (e aqui um parênteses: segundo ainda o ladrão-delator, Lula da Silva e Dilma Roussef são sabiam de nada, ao contrário do que foi desonestamente divulgado às vésperas da eleição pela revista VEJA-ÓIA).

A propósito, lá no distante ano de 1989 (há 25 anos, portanto) o competente jornalista Ricardo Boechat, da Rede Bandeirante, foi agraciado com o Premio Esso de Jornalismo exatamente pela denúncia pública de roubo na Petrobrás, daí sua indignação com a recente declaração de FHC de que sentia vergonha com o que estava acontecendo naquela estatal.

Com a palavra, pois, o Boechat:

Acho que ele [Fernando Henrique Cardoso] está sendo oportunista quando começa a sentir vergonha com a roubalheira ocorrida na gestão alheia. É o tipo de vergonha que tem memória controlada pelo tempo. A partir de um certo tempo para trás ou para frente você começa a sentir vergonha, porque o presidente Fernando Henrique Cardoso é um homem suficientemente experiente e bem informado para saber que NA PETROBRÁS SE ROUBOU TAMBÉM DURANTE O SEU GOVERNO. “Ah, mas não pegaram ninguém!” Ora presidente! Dá um desconto porque só falta o senhor achar que na gestão do Sarney não teve gente roubando na Petrobras. Na gestão do Fernando Collor não teve gente roubando na Petrobras. Na gestão do Itamar Franco não teve gente roubando na Petrobras. A Petrobras sempre teve em maior ou menor escala denúncias que apontavam desvios. EU GANHEI UM PRÊMIO ESSO EM 1989 DENUNCIANDO ROUBALHEIRA NA PETROBRÁS.  […] A Petrobras sempre foi vítima de quadrilhas que operavam lá dentro formada por gente dos seus quadros ou que foram indicados por políticos e por empresários, fornecedores, empreiteiras. Então, essa vergonha do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é sim uma tentativa de manipulação política partidária da questão policial”.  (o que a “tucanhalada” tem a dizer, a respeito).

No mais, convém registrar que das 09 (nove) empreiteiras envolvidas na Operação Lava-Jato, 06 (SEIS) financiaram a campanha do “playboy do Leblon” (Aécio Neves) – e é igualmente fundamental observar que 05 (CINCO) delas dividiram as obras da Cidade Administrativa, uma obra faraônica, absurda e desnecessária que Aécio empurrou sobre os mineiros, num custo superior a 2 BILHÕES de reais, em vez de investir em obras de infra-estrutura que realmente beneficiariam o estado. Aliás, estranhamente dois prédios IDÊNTICOS acabaram sendo construídos por dois consórcios DIFERENTES, o que é inexplicável.

Teria o “playboy do Leblon” (Aécio Neves) alguma justificativa para tamanha excrescência ???


JOÃO NICODEMOS - José do Vale Pinheiro Feitosa

Vamos falar assim: eu conheci João Nicodemos. Vi uma única vez. Na casa do Roberto Jamacaru. Nicodemos, eu conheço desde que nasci e ele mora numa casa depois da minha.

Se fosse dizer da flauta de bambu ou da rabeca, feitas na maior parte das vezes pelo próprio, iria cair na arapuca dos pedaços de tempo. Eu quero falar é do tempo pleno. Do modo de tocar que não é uma mera fração, cada vez mais dividida dos tempos das notas musicais.

Um pé atrás para que me explique melhor. Eu sempre tive muita pena de mim. Desafino. Não sei tocar nenhum instrumento musical. Memorizo bem as músicas, mas não peçam que as cante inteira. Até porque seria desagradável de ouvir as folhas de outono caindo entre uma nota e outra.

Aí outro lado da questão. Mas também tenho muita pena daqueles que têm o chamado ouvido universal. Vivem pelo mundo comparando os sons e classificando-os por semelhanças e dessemelhanças. Isso pode até chegar num músico muito bem posicionado, mas não é o que desejaria.

E aí do meu estado penoso, comigo e com alguns, eu me dei conta de gente como João Nicodemos tocando seus instrumentos. Caí perfeitamente na minha falha tectônica. Ele é um contínuo, como já disse é tempo pleno, uma narrativa sensitiva do mundo. Uma tradução auditiva do estado emocional que só pode ser compreendido pela fusão de todos os sentidos, mais a memória e a capacidade de refletir sobre o conjunto. Tudo num átimo de tempo.

Por isso digo que pleno. Como bem sabemos o conjunto dos sentidos é maior do que soma de cada um individualmente. Baudelaire já traduzia isso em seus poemas. E Nicodemos, com o som de sua rabeca, de seu bambu (como era bom o tempo que dizia taboca) não é apenas audição, é a soma de toda a nossa história expressa num momento ritualístico de sua revelação.

João Nicodemos, tem muita tarefa pela frente. Quem anda neste diapasão carrega o grande peso do universo da arte. E arte é estado permanente de inquietude e avançar sempre sobre a paisagem adiante.


E esta música brasileira é demais! 


 





terça-feira, 2 de dezembro de 2014

CEARÁ ANTECEDEU HITLER: CRIOU CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ANTES DA ALEMANHA

A Folha de São Paulo de 30/11/2014 publicou matéria sobre campos de concentração no Ceará. Era um dos métodos utilizados pelos Governos Federal e Estadual para segregar os mais desfavorecidos. As classes média e alta não desejavam conviver com o incômodo da pobreza. A reportagem é boa mas distorceu completamente as declarações de Almina Arraes, minha mãe. A afirmação de mamãe, na época com 8 anos, foi que os flagelados eram pessoas famintas, mas ordeiras e pacatas, não eram bandidos. Precisavam de assistência e não de prisão. Vejam o texto abaixo:


  • Viagem pela memória de campos de concentração no Ceará

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER

RESUMO Com as secas do início do século 20, famintos dirigiam-se à capital do Ceará, assombrando as elites que idealizavam uma Fortaleza "belle époque", moderna --e limpa. O governo criou campos cercados para confinar milhares de retirantes; hoje, alguns tentam evitar que a memória desses lugares se apague.
Uma coisa era certa: aquela gente fedida, piolhenta, faminta e desesperada tinha que ser mantida à distância. Era 1932, e Fortaleza não parecia disposta a olhar para trás. Na virada do ano, a capital cearense inaugurava o hotel Excelsior, seu primeiro arranha-céu. Em sua edição de 2 de janeiro, o jornal "O Povo" destacava o "terraço aprazibilíssimo, de onde se descortinam belíssimos panoramas do mar, das serras e dos sertões vizinhos".
O novo prédio anunciava novos tempos e contrastava com a precariedade da multidão imigrante dos "sertões vizinhos", que fugia de uma das piores secas já vistas no Nordeste. Alguém precisava fazer algo, e rápido, antes que a turba miserável eclipsasse a "loira desposada do sol", epíteto da capital oxigenada pela síndrome de "belle époque" brasileira. A resposta governamental foi confinar os que vinham de trem em sete currais cercados com varas e arame farpado, próximos à estrada de ferro.

Eram homens, mulheres, velhos e crianças, de cabeça raspada contra piolhos, alguns vestidos em sacos de farinha com buracos para enfiar o pescoço. Os mais robustos serviam de mão de obra em fazendas e obras públicas. Milhares morreram de fome, sede ou doenças. Com entrada compulsória e sem data para o "check out", esses depósitos humanos tinham nome: campos de concentração.
Só em 1933 os nazistas criariam seu primeiro campo, numa fábrica de pólvora reestruturada para encarcerar comunistas, sindicalistas e outros desafetos do chanceler Adolf Hitler. A prática de isolar os "molambudos" dos "cidadãos de bem" já era velha conhecida no Brasil de Getúlio Vargas --um país em que a população caminhava para os 40 milhões.
Dados oficiais contavam 73.918 aprisionados pouco mais de um mês após a abertura dos campos em seis cidades do Ceará (Crato, Ipu, Quixeramobim, Senador Pompeu, Cariús e Fortaleza), conforme relata a historiadora Kênia Sousa Rios, autora de "Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e Poder na Seca de 1932" (Museu do Ceará, 2006). As duas aglomerações da capital viraram até atração turística: visitantes doavam uma certa quantidade de dinheiro aos enjaulados e dali saíam com "a sensação de dever cumprido".

"O risco de ter a cidade invadida pela sombra sinistra da miséria' parece seguido da compreensão de que a situação é trágica, portanto merece a atenção da burguesia caridosa e civilizada", escreveu a historiadora no artigo "A Cidade Cercada na Seca de 1932" (publicado no volume "Seca", Edições Demócrito Rocha, 2002).
ESMOLINHA No romance "O Quinze", Rachel de Queiroz narra como a heroína Conceição "atravessava muito depressa o campo de concentração", trêmula ao ouvir a súplica: "Dona, uma esmolinha"¦". Apertava o passo, "fugindo da promiscuidade e do mau cheiro do acampamento".

Algo de fato cheirava mal no Ceará, e desde a grande estiagem de 1877, a elite local sentia o odor. Sete anos antes, haviam sido estabelecidas normas de conduta "que identificavam a modernidade fortalezense' com a civilidade europeia'", fazendo da capital "um modelo asséptico para todas as cidades cearenses", escreveu o historiador Tanísio Vieira no artigo "Seca, Disciplina e Urbanização" (também coligido em "Seca"). Uma das proibições fixadas era a de sair às ruas sem "pelo menos camisa e calça, sendo aquela metida por dentro desta".
Imposições dessa ordem eram a última coisa a passar pela cabeça dos mais de 100 mil sertanejos em retirada da seca de 1877. Fortaleza, então com 30 mil habitantes, viu sua população se multiplicar por três. O governo, por sua parte, redobrou esforços para que a invasão bárbara jamais se repetisse.

Em "A Seca de 1915", o escritor Rodolfo Teófilo (1853-1932) descreveu o pioneiro campo do Alagadiço, nos arredores da capital, que serviria de piloto para os sete campos dos anos 1930: "Um quadrilátero de 500 metros onde estavam encurralados cerca de 7.000 retirantes". Lá, quando havia comida, ganhavam "reses que morriam de magras ou do mal [peste]", cozidas "em algumas dúzias de latas que haviam sido de querosene".
O jornal "O Nordeste" anunciava o 17 de fevereiro de 1923 como o Dia da Extinção da Mendicância. Ser mendigo seria, a partir dali, contra a lei. Se ruas e praças continuassem "expostas a graves perigos de ordem moral", os infratores seriam enviados ao Dispensário dos Pobres, sob os auspícios da Liga das Senhoras Católicas Brasileiras. A ideia, na prática, não foi longe, e as madames continuaram a ouvir: "Dona, uma esmolinha"¦".

Nem toda a caridade cristã seria o bastante para dar conta da diáspora de 1932, quando jornais falavam do "exército sinistro de esfomeados" em marcha até a capital.
PAPA-FIGO Ainda hoje, em Senador Pompeu, circula a lenda sobre um ente que surge de supetão para abrir seu bucho e roubar um pedaço do fígado. A fábula do Papa-Figo nasce de fatos reais. Carmélia Gomes, 91, que era uma menina em 1932, lembra do médico que extraía amostras do órgão de quem morria no campo e as mandava à capital para análise clínica.

Dentro de sua casinha, semelhante a tantas outras nas redondezas, dona Carmélia prende os cabelos brancos e senta-se numa cadeira de plástico roxo, logo abaixo de pôsteres dos papas João Paulo 2º e Bento 16. Ela conta que, até sofrer um assalto, vivia num terreno mais ermo, terra onde seu pai trabalhava 82 anos atrás.
Antônio Gomes se despedia com um beijo na testa da mocinha de nove anos e partia para o ofício: vigiar os concentrados de Senador Pompeu. Voltava para casa contando sobre "lagartixas entrando na boca dos defuntos, tudim inchado por causa da fome". Alguns guardas eram tão temidos que viravam sinônimo de "coisa ruim". Caso do cabo Félix, que acabou nomeando o feijão servido ali, duro feito pedra da caatinga.

Senador Pompeu, à primeira vista, é uma cidade com problemas e hábitos corriqueiros; adolescentes tiram selfies na sorveteria, e casas metade verde, metade rosa exibem na fachada propagandas políticas pintadas à mão. Mas ali, como dona Carmélia, muitos se esforçam para lembrar o passado.
Em um blog que leva seu nome, Valdecy Alves, 51, apresenta-se em maiúsculas: ADVOGADO MILITANTE E MILITANTE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS, com serviços prestados à Cáritas e ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antonio Conselheiro. Filho pródigo de Senador Pompeu, hoje em Fortaleza, voltou à cidade natal para a romaria
de 9 de novembro.
Com início marcado para as 4h30 daquele domingo, em frente à igreja, o cortejo reúne netos, pais e avós, todos de branco, para homenagear "as almas penadas da barragem", mortas no campo de concentração. Hoje, segundo a crendice do povo, elas viraram santas que atendem a promessas, numa versão, local e diminuta, do culto ao padre Cícero.

Na véspera, Valdecy Alves nos levara aos arredores da barragem onde os retirantes foram enclausurados. Existe ali um cemitério, ponto de chegada da romaria. O espaço é simbólico: foi erguido sobre uma das valas comuns, onde "até 40 defuntos eram sepultados sem atestado de óbito, em covas rasas o bastante para que urubus e cães cavassem e comessem os restos", diz Alves.
O cemitério, um quadrilátero de 1.089 m², tem no centro uma capela. À sua frente, visitantes acendem velas e empilham simbólicas garrafas d'água de 500 ml. Na entrada, alguns santinhos políticos e latas de cerveja se acumulam diante de duas mudas de árvore. Lê-se nos vasos de cimento: "Fale a Deus o tamanho do seu problema".

Em sua moto preta com o rosto de Jesus estampado na buzina, Francisco de Assis, 48, chega ao local para pintar de branco os muros do cemitério. Ele é um dos que --garante-- foram ouvidos pelos santos. Para quitar seu carnê espiritual, caminhou por uma hora, descalço, até o cemitério. Valdecy Alves frisa: "De cada dez pessoas que você encontrar nas ruas, metade deve promessa aqui".
A história do campo de concentração de Senador Pompeu já era ligada à seca desde antes desse destino infame. Em 1919, ingleses ganharam uma concorrência para levantar no local uma barragem para sanar os efeitos da escassez de chuvas. Por falta de verbas, as obras pararam. Em 1932, o governo integrou ao campo o casarão que fora construído para servir de morada aos estrangeiros.

A carcaça arquitetônica tem paredes amarelas pichadas com dezenas de falos, juras de amor e até um Buda gordinho. Nos anos 1990, o lugar ainda era uma referência para retirantes. Famílias faziam filas quilométricas para obter a parte que lhes cabia nesse latifúndio --porções de farinha, charque, rapadura e café que o governo distribuía.
Valdecy Alves cruza os braços sobre a camisa polo vermelha e ergue o queixo, um tanto solene. "Kant dizia que não há liberdade enquanto você tiver necessidade. O povo há séculos é vítima de uma seca previsível, cíclica. Então, o Estado é que está falido."

E desmemoriado também: o advogado cobra a preservação das ruínas e reclama de que "documentos gigantescos de uma época que não pode se repetir" estão à míngua. Procurado, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional diz que "não há proposta de tombamento em nível federal". No plano municipal, a prefeitura abriu um processo com essa finalidade, ainda não finalizado.
CAMINHADA Alves tem companhia no seu esforço de tirar o passado do armário. Enquanto outras cidades ignoram seus campos, em Senador Pompeu um carro de som alterna anúncios do "forrozão" e da "caminhada da seca".
De óculos escuros e celular acoplado a alto-falantes, o padre começa a romaria na madrugada de domingo. Há velhinhos de bengala, mulheres com crucifixos mergulhados em grandes decotes e estudantes que usam "abadá" --regata com a inscrição "32ª caminhada da seca - Eu fui" e a estampa de um polegar que reproduz o botão "curtir" do Facebook.

"O povo diz que quem morreu de fome vira santo", diz Yasmin dos Santos, 11, repetindo o que ouviu numa palestra na escola. Daiana Soraya, 12, é grata às "almas santas", que a ajudaram com uma briga de escola. "Um menino que já tinha namorada ficou falando comigo. Ela achou que eu estava a fim dele. Queriam me pegar, mas eu fiz uma promessa. Hoje tô pagando", diz a jovem devota, mostrando os pés descalços.
RELATOS Já no Crato são poucos os que se lembram do campo projetado para 5.000 pessoas --e que chegou a receber quatro vezes isso, segundo relatos de sobreviventes.

"A mãe falava que a comida era tão ruim que não tinha quem comesse. Mas chegou um pessoal e quis as tripas de porco e gado que o vô usava para fazer sabão. Estavam até estragadas", conta Rita Lobo de Grito, 66, que andava por uma rua de terra próxima ao local do antigo campo cratense.
"Jogavam um em cima do outro quando o pessoal morria. No outro dia, de manhã, um pediu: Me tira daqui que eu não tô morto, não'. Tudo isso meu pai contava", diz Milton Pereira, 85, que recorda também a corrupção no controle dos mantimentos. "Enquanto uns morriam de fome, outros enricavam. O governo mandava trazer o gado e sumia a metade."

Com duas estátuas do padre Cícero ("primo do meu pai") no jardim, Rosafran de Brito Melo, 67, diz que os campos tinham razão de ser. "Pra não haver briga. Ou virava bagunça. Entre tantas famílias, sempre vem um meio danado."
Almina Arraes, 90, não via nada de danado na gente que aparecia no casarão de sua família, às vezes tomada por retirantes fugidos dos campos. Lembra de brincar com "uma criança muito magrinha, que gritava quando via comida".

Hoje ela mora ali com uma irmã de 95 anos, que sofre de Alzheimer. E mantém uma "sala dos mortos", com retratos do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes (1916-2005), e do neto dele, Eduardo Campos (1965-2014).
Almina preserva suas memórias, mas a "amnésia" em relação ao passado prevalece. "É um resquício da cultura coronelista", avalia Luciana de Medeiros Campos, 36, funcionária da Secretaria Municipal de Cultura que nos acompanha em passeio pela região. Não interessa à elite cratense mexer nessa ferida, afinal, muitos "vôs" e "vós" foram coniventes com o campo de concentração e o cemitério das valas comuns.
Hoje eles estão ocultos sob uma fábrica de papel e um singelo campinho de futebol.

DESTERRO Nos 600 km que cruzou, a reportagem foi acompanhada pela curadora Beatriz Lemos, 33, e pelo artista plástico Ícaro Lira, 28. Fortalezense radicado em São Paulo, Lira lançou na Bienal da Bahia, em maio, seu projeto "Desterro", que começou com Canudos e agora recupera o passado dos campos de concentração do Ceará. "Meu papel é trazer à tona o processo de apagamento oficial do Estado", diz o artista.



< /div>

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Eu sei que vou te amar - José do Vale Pinheiro Feitosa

Eu sei que vou te amar - Vinícius de Moraes e Antonio Carlos Jobim - Canta Maysa

Prometeu sexual, sem tormentos, esvaziamentos ou o renascer para depois esgotar-se. Não é assim como uma sentença. É uma nascença como a alvorada e o entardecer de todo o universo sobre o panorama que a paisagem da terra me oferece.

Prometeu, a forma da atração, a deidade que é a pele que reveste todos os sentidos, os terminais sensitivos que confessam a sensualidade. A força da gravidade que precipita matéria, energia e o insensível um ao encontro do outro. Esta inconfessável individualidade em plena negação através de um exercício aos píncaros do esgotamento. Um exercício de fusão absoluta.

Mas o abutre não é isso. Nem isso é o fígado de Prometeu. É outra coisa e tantos pela vida pensam que não é. Mas não adianta dizer que é amor. Eu sei que vou te amar. Por toda a minha vida eu vou te amar. Por tanta bile secretada nestas etéreas relações que murcham, se esvaziam, como folhas soltas nas soleiras das portas fechadas.

Tudo é outra coisa. Diferente do cansaço da lida. Das amarguras, desconfianças e traições. Das negações, da covardia, do muito que era e do pequeno que se mostrou. Tudo é diferente porque é o Prometeu Sexual.

A repetição desta maravilhosa fusão que antes do anoitecer parece se esgotar e não se esgota nunca. Recomeça como esta força da consolidação. Da qual civilizações apareceram, o futuro se constituiu e as forças se multiplicaram por todos os continentes.

Por todos os continentes como o conteúdo único dentro deles. A gravidade que funde. 
Manuel Audaz - Toninho Horta e Fernando Brant - canta Jane Duboc

Esta pluma que as correntezas levam. Pelas montanhas de Minas. Curvando pelas estradas labirínticas destes cortes de passagem entre morros. E vamos audaz numa ânsia infinita por novas porteiras. As vacas pastando nas encostas como se estivessem coladas a elas.

Uma beira de cerca. Um velho jirau onde os bules de leite foram deixados pelos caminhões afluentes das cooperativas. Pedaços de chão rachado pelas águas das chuvas. Um capim fora do cercado. O cupim criando morrotes como pequenos bolos de barro na paisagem.

E audaz, este jipe vai fundo no nível mais baixo dos vales, ciranda a beirada dos riachos, pula nos buracos da rodagem, veloz ao encontro do requeijão mineiro. Uma broa de milho. Um café da tarde, uma conversa temperada a silêncios, uma varanda para olhar o mundo se escarafunchando lá nas coisas que acontecem.

E risca com seu rangido de molas enferrujadas bem no terreiro da casa. Os bichos se espantam. O cão late, a vaca responde, o pavão ecoa, e lá os de casa vão apertar as mãos dos viajantes que descem do Manoel Audaz. Uma cachaça de rolha para esquenta a satisfação da boa chegada.

E afinal a que tanta viagem neste passo audaz. Velha amiga eu volto a nossa casa. Já não a encontro sempre pronta. Os corredores emudeceram. As fotografias amarelaram. Os quartos estão vazio. E tu não te encontras ao pé do fogão.

O fogão é só continente. Nem mais um resto do pó das cinzas dá última vez que gerou trabalho.
Velha amiga eu volto à nossa casa. 

Diana - Fernando Brant e Toninho Horta - Canta Boca Livre

Amanhecendo mais um dezembro...


domingo, 30 de novembro de 2014

Dona - Sá e Guarabira - cantada pelo grupo Roupa Nova

Cheiro Mineiro de Flor - José do Vale Pinheiro Feitosa



A corrida para as cidades foi de repente. A porta se escancarou e deixou a casa abandonada. Uma flor murcha. A lagartixa nas brechas do reboco. O borralho ainda quente da última panela que alimentou aqueles que fugiram no rumo das cidades nem bem o meio dia chegara.

E ficaram ali mesmo pela periferia das cidades. Não havia lugar nas casas de ruas calçadas, água servida, luz nos postes e passeio montado. Ali mesmo entre um papelão, uma folha de zinco, uma tábua por arranjo. Um teto que filtrava estrelas assim como borbotava as chuvas geladas que inflamavam os pulmões.

Não se teve nem tempo de pensar antes sobre os passos da corrida. Um saiu, depois outro, mais acolá alguém, um a um os botões foram afrouxando, depois preso a uma única perna de linha e finalmente caindo de suas casas. E a camisa da vida desabotoada deixou uma sensação tão grande de desamparo a mover as pernas sem que os braços entendessem o motivo.

Se tivesse uma noite mais, talvez o canto soturno do bacurau lembrasse que por vezes a pouca luz é mais propícia que o lume do meio dia. Mas os becos enlameados, os monturos de lixo, o fedor entranhado das valas por onde as ratazanas pulam de uma margem a outra, são o fim da corrida.

E só restou uma viola a lembrar aquele cheiro mineiro de ser. Aquelas cores inteiras de ver. Aquelas melodias maneiras de se encantar. Aquele jeito de lembrar o lugar de onde se veio. O veio soterrado por estas camadas urbanas de ser.


Este cheiro mineiro de serra. O beija flor. Este cheiro mineiro de flor. 

A MARCHA DESTRUTIVA DAS SOCIEDADES OLIGÁRQUICAS - José do Vale Pinheiro Feitosa

Na última postagem apontei o quadro da civilização que gera incertezas humanas profundas. Hoje apontarei três coisas extremamente graves pois apontam para uma civilização comandada por uma elite embriagada pelos negócios. Uma elite que vive numa era de grande desenvolvimento do conhecimento e que se identifica cada vez mais com as deidades gregas. Poderosas, eternas e auto protegidas.

A primeira delas é a que explica a incerteza. A concentração absurda da renda, gerando uma desigualdade econômica e social nunca sentida na humanidade. Especialmente com tendência totalitária pois que engendrada por grupos que o tempo todo operam “cientificamente” para manipular toda a realidade a seu favor. Não vou repetir os números, o livro Capital do Século XXI de Thomas Pikkety é suficiente para desnudar esta realidade. Além dos estudos feitos na Suíça onde se demonstrou que um grupo muito pequeno controla a maior parte das operações das grandes corporações financeiras e produtivas.

O outro ponto foi o recrudescimento da corrida armamentista. Especialmente revelada nesta fase pela crise da Ucrânia, envolvendo EUA, Rússia e a Europa. Estamos revivendo o velho clima em que o espírito dos cavaleiros do apocalipse retorna aos céus da humanidade. Tudo em benefício de uma plutocracia mundial que em falta de identidade com as gentes, resolve matar as que existem.

Olhem só algumas loas às armas retornando aos caninos sangrentos. Estamos vivendo o “êxtase” de admiração das vítimas potenciais ao enorme poder de morte e destruição. Lembra aqueles “pequenos” que salivavam de prazer ao descrever a guerra de blitzkrieg de Hitler com suas armas fabulosas.

Vejamos esta vitrine dos russos. Mísseis Balísticos Intercontinentais (ICBMs) que viajam a incríveis 18 Mach, armados com MIRVs, que são Veículos de Múltiplas Entradas, capazes de carregar até 8 ogivas nucleares (ou outra bomba) que se dirigem a alvos diferentes. Mísseis Iskander que voam a velocidade Mach 7 com autonomia de 400 Km, capazes de carregar ogivas de 700 Kg e com precisão de alvo de 5 metros.

Uma vitrine mortal de mísseis terra-ar como o S-400 e o S-500 capazes de criar uma barreira a qualquer avanço aéreo. Aviões supersônicos cada vez mais sofisticados e capazes de penetrações profundas destrutivas no território inimigos. É um arsenal dos deuses do Olimpo.

A ficção científica ou as projeções científicas, não tenhamos dúvidas, fazem parte da estratégia de domínio e congelamento do futuro. Agora com empresas privadas correndo em disparada, igualmente às armas destrutivas, em busca da sintetização de DNAs que possam gerar todo tido de seres novos em benefício da elite, para solver problemas exclusivamente delas, inclusive matando em escala, os indesejados.

Os controles privados já anunciam a era da “evolução dirigida pelo homem.” A evolução pós darwinista, não mais natural. John Craig Venter  (aquele que correu na busca de desvendar o DNA humano de modo privado) já conseguiu digitalizar em computador um DNA, depois sintetizá-lo em laboratório, em seguida extrair o DNA original de um ser vivo e introduzir o sintético.

Teremos a criação artificial de vírus capazes de promover pandemias que cessarão mediante soluções privadas de combate. Agora mesmo pegaram um vírus da H5N1 que apenas se transmitia entre aves e que passaram a se transmitir entre mamíferos.

Aí vem a novidade plutocrata: este “domínio” será capaz de fazer avançar a evolução humana, permitindo que alguns ultrapassem o problema do envelhecimento, doenças crônico degenerativas regridam, já se identificam células tronco capaz de substituir tecidos e órgãos humanos com fisiologia “errada”. Vem aí a fina flor para madame e o senhor todo poderoso da bolsa de valores.

Eles poderão num futuro próximo, enriquecer laboratórios que operarão no mesmo modelo de negócio do desenvolvimento de softwares, capazes de desenvolver uma medicina personalizada ou de precisão capaz de digitalizar modelos moleculares dos genes, proteínas e comunidades bacterianas de cada pessoa. Claro aquela elite que pode pagar estes vorazes entes privados.

Mas acontece um detalhe: mesmo que essa “ficção” aponte a imortalidade, a invulnerabilidade continua em causa. Como por exemplo, os mesmos valores que estão no segundo ponto, a corrida armamentista. Aquela que se encontra no mesmo diapasão de sustentação das plutocracias globais.

Enfim todos estes três pontos respondem pela ditadura totalitária dos Deuses Gregos. Raivosos. Brincalhões. Enamorados por mortais escolhidos e vingativos com quem lhes causa incômodo. A sociedade plutocrata é a ditadura em Estado Pleno. E os liberais imaginaram que tudo se espelhava apenas no Comunismo Soviético.  

sábado, 29 de novembro de 2014

O distúrbio mental é fruto desta história - José do Vale Pinheiro Feitosa

Os problemas continuam os mesmos: incerteza, privações e não saber o que o futuro pode trazer.” Dr. Nader Alemi, médico psiquiatra afegão.

Durante a reunião do G20 na Austrália aconteceu uma série de reuniões paralelas para apontar questões para a humanidade. Afinal o G20 é um grupo de nações procurando ajustar as questões globais. Entre os debates paralelos um foi sobre saúde e ali se destacou a questão: os distúrbios mentais eram grave problema de saúde pública, que a Organização Mundial da Saúde não valorizava e apontava a enorme deficiência de profissionais habilitados numa realidade em que tais distúrbios tendiam a crescer.

Frases do tipo mal do século mostram a perplexidade e, por isso, não explicam bem as questões. E temos um conjunto de “novidades” que faz do momento uma “instabilidade” permanente no desenvolvimento humano em termos culturais, econômicos e sociais.

O primeiro deles é urbanização praticamente universal em toda a humanidade. As comunidades estão desaparecendo, a família de parentela é substituída pela família nuclear, esta mesma numa fragilidade permanente e tendendo a se tornar a solidão (individualização). A língua e as tradições estão constantemente esbarradas por elementos contaminantes.

A vida laboral é ultra explorada, instável, fragmentada, alienada, tediosa, frágil como a teia da qual é parte sem entender nem a tessitura ou a malha inteira. Para suportar o estado permanente de fragilidade é induzido ao aporte químico permanente (tabaco, café, cocaína, álcool etc.) para se manter em estado eufórico, atento e vigilante porque a qualquer momento um fragmento da realidade irá soltar-se e destruir a história que tenta construir.

A privação de todos os meios de suporte à vida atinge milhões de pessoal e elas são vistas como estorvos ao processo em curso. Examinem conscientemente a questão da Doença Provocada pelo Vírus Ebola, a destruir a vida dos africanos, enquanto a fina flor da ciência permanece a serviço do capital que não se interessa por esta gente. Os organismos multilaterais nem arranham a casca ideológica desta realidade.

Um estado deste é arrasador da confiança no outro. Não se pode confiar num semelhante com a vestimenta de um predador. Ao mesmo tempo que expõe todos os povos aos nichos no meio da floresta, uma brigada tribal emerge na clareira para decepar todas as vontades, toda a escrita que aponte horizonte e luzes. A clareira é o campo apropriado para estreitar a realidade a uma brecha pela qual nunca se enxerga a diversidade desta realidade.  

De autor e sujeito da história, tornou-se objeto do consumo, capital humano, técnico de algum parafuso da engrenagem, expectador do teatro que deveria ser ator, peça descartável do tempo em curso. A angústia antecipatória da próxima decepção, da expulsão do jogo, de permanecer na reserva, mas fora do campo. Ser apenas uma unidade na massa que espera uma oportunidade nunca vinda.

O Dr. Nader Alemi durante os anos em que os Talibãs governaram o Afeganistão, atendeu milhares destes combatentes. E todos sofriam distúrbios mentais graves em decorrência das incertezas de suas vidas. Não tinham controle do que estava acontecendo com suas vidas. Na linha de frente por tantos anos, numa vigília de vida e morte, vendo gente explodir, parte permanente da violência.   

Agora as grandes nações do ocidente estão em crise econômica e social. A juventude absolutamente sem horizonte, uma incerteza contínua de cada medida do tempo. As tensões violentas estão crescendo. Só no Brasil num ano foram assassinadas mais de 50 mil pessoas, a maioria jovens e negros. E não somos um caso isolado. Somos a regra do modelo de civilização que vivemos.  


Por isso a frase do Dr. Alemi continua sendo verdade no Afeganistão, mesmo depois dos talibãs. A guerra não é a exceção, ela é a constituição do modo capitalista de reprodução na história em todo o mundo.  

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Enchendo linguiça

J. Flávio Vieira

                                               Uglino Petico era feirante do ramo de miudezas. Vivia naquela vida nômade de mascate: domingo em Matozinho, terça em Bertioga, quinta em Serrinha dos Nicodemos, sexta em Ananás Florido , sábado em Jurumenha Mirim. Chegava, em geral, numa D-20 velha, apelidada de “Jega Zonza” . Aportava, sempre,  na noite anterior , na cidade agendada,  para a organização do evento. Escolhia o estratégico ponto, que mantinha geográfica e religiosamente há mais de vinte anos, estendia a lona puída no chão e, madrugadinha, arrumava , em cima,  a troçada toda :  armadores de rede; correntes ; martelos;  cordas;  ferrolhos; dobradiças; serrotes; cabos de enxada, de foice, de machado; traves de porta e janelas; imagens de santos; meizinhas como  arnica, boldo, hortelã, bicarbonato, jurubeba; temperos que inundavam o mundo com seu cheiro : colorau, pimenta do reino, cominho, alho, louro...

                                                Cedinho já começava a vender a toda matutada e varava o dia neste ofício. Tardezinha, recolhia tudo, arrumava na velha caminhonete e partia para uma outra Vila a fim de começar tudo novamente. Vidinha cansada, atribulada, mas divertida.  Depois de tantos anos,  já conhecia todos os companheiros de ofício e terminara por criar uma fiel freguesia. A noite que antecedia à feira , onde todos os comerciantes ambulantes se reuniam para arrumar os picuaios a serem vendidos no dia seguinte, passada canseira do arruma-arruma, se transformava sempre numa festa. A zinebra corria solta, sempre havia alguém com um pé-de-bode e, como por encanto,  apareciam um violão, um triângulo , um pandeiro. Altas noites, a cumplicidade da escuridão fazia  os casados se arrumarem  e os solteiros arranjarem um cobertorzinho de orelha para varar o frio da noite. Com tantos anos de estrada, os casais se iam formando naturalmente. Uglino tinha mulher em Matozinho, mas usava, no meio do mundo, como refil, o corpo morno de Dorinha Manzape, uma vendedora de filhóis, charutos e quebra-queixos.  O colete  já durava mais de dez anos e , contava-se a boca miúda,  pelo menos os cinco últimos filhos de Dorinha contaram, certamente, com a participação especial de Petico, seja como ator principal, seja como coadjuvante.
                                               Estes rebentos de Dorinha vinham  se juntar com mais doze que Uglino produzira com D. Estelita , sua fiel companheira, recebida em pé de padre, há mais de trinta anos.  Petico , comentava-se, era uma espécie de jumento de lote e esta história vazara de fontes mais que confiáveis : das amplificadoras quengais  da Rua do Caneco Amassado. Tinha o homem  fama de touro reprodutor e, também, comentava-se  uma outra similaridade que o aproximava do jerico: portentoso nos países baixos, era gigante pela própria natureza.  Mais de uma neófita da mais tradicional das profissões já havia refugado  ante a visão  daquela arma aterradora que parecia o pau da bandeira  nas quermesses de Matozinho. Enfrentar aquela surucucu, não era empreita para amador, mas obra para profissional com curso no  Butantã.
                                               À medida que os filhos foram surgindo, um a um, Uglino notou que , com a entrada de Dorinha em campo, começou uma certa disputa entre as duas mulheres, cada qual querendo ser mais fértil que a outra. Petico tentou até fazer com que as duas utilizassem algum método anticoncepcional, mas instalada a corrida da fertilidade, notou que seria impossível entregar esta tarefa à Dorinha e Estelita. Buscou, então, o Posto de Saúde e um Programa do governo chamado de  BEMFAM. Lá, a D. Veneranda,a mais antiga enfermeira da vila,  tentou orientar o paciente. Ela  se mostrava visivelmente constrangida. Era uma das últimas virgens sacramentadas dali e acreditava que se nunca tinha traçado e cortado o baralho não devia lhe caber a função de dar as cartas. Mas que jeito ? Olhos fitos no chão, cara de acerola, indicou, cheia de dedos,   o uso da camisinha. Era método prático, tranquilo e, o melhor, ficaria completamente sob controle dele.  Informou, então,  de forma muito genérica sobre o uso da estrovenga.
                                               --- Você já viu , no mercado, o magarefe enchendo linguiça ? Pois é daquele jeito, viu ? Só não precisa  picotar a carne, né ?
                                                Petico fez-se meio renitente, por muitos motivos. Aquele papelzinho deixado em cima do caramelo, tinha tudo para tirar o gosto do bom-bom. Depois, pensou consigo: já madurão, vestir aquele negócio, bimba acima,  parecia perigoso. Aquilo era coisa para adolescente , arisco,  bastava triscar que a juriti levantava voo. Na  idade dele, botar aquela vestimenta,  poderia enganar um Bráulio já meio sonolento e o bicho, meio bambo,  poderia interpretar aquela indumentária como touca  e botar-se pra  dormir imediatamente. Mas o certo é que  Veneranda tinha poder de convencimento e conseguiu, mesmo com todos arrodeios possíveis,  derrubar  os seus temores. Iria correr tudo às mil maravilhas, logo ele se adaptaria e conseguiria, por fim, pôr os dois times em disputa , fora de jogo.  Basta de tanto crescei e multiplicai !
                                               Na semana seguinte, depois da via sacra de feiras,  Uglino volta ao Posto preocupado. Procurou D. Veneranda que, ocupada, estava aplicando algumas vacinas numa récua de meninos. Com aquela voz tonitruante de camelô de feira , ele gritou, ainda da porta , sem se incomodar com a plateia :
                                               --- Enfermeira ! A tal da camisinha não deu certo , não !
                                               D. Veneranda,  com cara de urucum, se fez de mal entendida.
                                               --- Deu , não... ? E o que aconteceu , meu senhor ? Rasgou ? Estas costureiras de hoje...
                                               Uglino, quase berrando,  relatou um sério defeito de alfaiataria :
                                               ---  Não ! Ficou foi pegando marreca !


Crato, 28/ 11/ 14

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

RAIMUNDO CABIROTE - José do Vale Pinheiro Feitosa



Onde se encontra a raiz do nome Cabirote? Não se acha com facilidade. No dicionário há capirote que é uma espécie de pequeno capuz usado por meninos e donzelas. E, também, o vocábulo capiroto (ô), que é de uso informal no Nordeste para designar diabo, que se atribui seja uma variação de capirote. Mas que Cabirote seja um diabinho nas capoeiras e margens do Rio Siupé, lá isso muita gente tinha por observação.

Aquele menino que viveu solto e nu até onde as pernas alcançavam e até onde as braçadas no rio iam. No contraponto de toda vergonha conhecida, pois era justamente quando vestia um camisolão para que o menino ficasse apresentável às visitas de outros lugares, que o desejo de esconder havia. A nudez era sem timidez, mas a roupa humilhava.

Todos os seres das matas, vindos dos antecedentes mais ancestrais que por transmissão oral houvesse, faziam parte do continente e conteúdo do menino Cabirote. Raimundo Gomes de Lima, que adora um cará bem tratado, feito na água grande, um caldo quente a borbulhar, farinha na tigela e uma colher de encher a boca. E o suor pingando.

Jogo de bola no campinho da vazante do rio. Nunca se deixando intimidar pela valentia de quem quer que seja, já que valentia não é fruto de dar em árvore. Ela é como uma narrativa, acredita nela quem quiser. Cabirote não teme as madrugadas pelas ruas desertas de Fortaleza na solidão de sua bike, circunvagando o anel mais extenso da cidade.

Onde o “progresso” do Ceará ergue uma monstruosidade industrial junto ao porto do Pecém, Cabirote é um ícone a mover todos os músicos e, por isso mesmo, todos os artistas que são porque são, e não apenas porque a circunstância lhes permite. Nas ruas do Pecém, nos palcos do Siupé, na praça de São Gonçalo, nos bares de Paracuru ou sob as estrelas de um restaurante rural na localidade do Capim Açu, nas franjas afastadas de Paraipaba.

E como um Eloi Teles nas ondas da Rádio Araripe na cidade de Crato, Cabirote na Rádio Mar Azul FM (www.radiomarazul.com.br), de Paracuru, todos os domingos, a partir das 8 horas da manhã vai carregando a cultura nordestina até ao meio dia. E aí o segredo do povo: ele é tão querido na redondeza que muitos o têm como da altura de um gigante. Um ser salvador da nossa alma cultural.
Mas o segredo deste homem não está no palco. Na audiência de terceiros. Ele é uma das mais legítimas companhias das noitadas de música. E que música! A memória descomunal que este homem evoca. Em bem afinada voz, um violão tão brasileiro como as noites de boemia que são apenas nossas. Não estão nem em Paris e menos ainda nos becos de Buenos Aires. Alguma referência a Lapa de outrora, a de hoje é bela, mas é outra coisa. Mais espetaculosa.

Deixe-se ficar nas horas passadas, uma canção após outra, uma interpretação que vai ao miolo da questão. Deixe-se ficar ao som da melodia sentindo a intimidade da madrugada, a singularidade das estrelas respeitosas, das nuvens silenciosas que são vultos para não atrapalhar a singeleza do viver como se deve viver a vida.

Raimundo Cabirote. Um artista sem limites de tempo, estilo e qualificações. Um artista como bem resumiu o compositor Fausto Nilo ao ouvir o canto de uma canção dele: “mas que voz mais linda!”
  


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Sai caro ao cobrador e ao pagador - José do Vale Pinheiro Feitosa

Leiam esta frase pronunciada por um jovem, de menor idade legal, a respeito do assassinato de outro jovem do qual foi partícipe: “O crime cobra caro, enquanto uns matam, outros morrem”.

Não especulo a sensação que a frase provoca em vocês. Mas sei que na televisão a edição a traduziu como a frieza de um assassino sem causa. A maldade em estado puro.

Antes de retornar à frase aqui no meu íntimo, vou levantar uma postagem feita nas redes sociais onde uma alemã, nascida na segunda guerra, estranha o avanço de neonazistas a hostilizar trabalhadores migrantes em busca de oportunidade.

E mais alguma coisa no nosso baú. Pesquisa realizada na Espanha evidencia que 6 em cada 10 jovens pretendem migrar do país em busca de melhores condições. E tudo isso termina por alargar o mal além de sua pureza, de algo subjetivo para entender a substantivada crise econômica. Ela, conforto ou desconforto de nossa consciência está na realidade que nós mesmo ajudamos a manter.

Olhem como os dois últimos parágrafos se chocam: o jovem espanhol migrante pode bem ser o hostilizado dos neonazistas alemães. Do mesmo modo que os nordestinos são dos paulistanos.

Fábio de Oliveira Ribeiro postando sobre a ânsia de vômito que sentiu a alemã ao observar os neonazistas escreveu: “Os jovens nazistas alemães e os fascistas brasileiros não aprenderam sua ideologia com os velhos nazistas e fascistas europeus....Eles não têm história e este é o verdadeiro abismo que os separam dos seus governantes. O vazio histórico destes restolhos do totalitarismo e do autoritarismo é um fato e pode se transformar numa tragédia caso esses jovens resolvam usar a violência para impor sua vontade aos alemães e brasileiros. Eles não causam temor aos seus respectivos Estados, que têm homens treinados e armados para lidar com terroristas. É óbvio, porem que devemos temer por eles, pois o mal que eles podem sofrer é bem pior do que aquele que podem causar.”  

Agora retornando à frase inicial. A natureza tende a agradar-se, evitar as pontas agudas, a evitar tempestades, maremotos e terremotos. A natureza não gosta de desperdiçar sua matéria e sua energia. Especialmente a economia não gosta do preço alto. A cobrança cara é instável e tende a baixar o preço.

Especialmente quando este preço é a prática alternada dos mesmos personagem entre o dedo no gatilho e o impacto da bala. A redenção é humana. Não é apenas moral, mesmo que esta possa servir de guia. O preço daquele exercício é incompatível com a existência do autor. E quando o autor não sobrevive, a autoria desaparece. 

terça-feira, 25 de novembro de 2014

CATÓLICOS EM CONTRADIÇÃO - José do Vale Pinheiro Feitosa

Com a chegada da modernidade, passadas crises do capitalismo e guerras mundiais, incluindo o nascimento da Guerra Fria, a monolítica igreja católica da romanização regional vinda do século XIX, ultrapassou os limites dos novos tempos. E ao assim agir, continuou o que sempre foi: uma partição tensa que ia do mais puro e violento reacionarismo ao mais intenso revolucionário.

Nas fileiras dos que se calam nos claustros ao peso institucional, não é possível esquecer as doutrinas imanentes dos seus fundamentos religiosos (pelo menos para aqueles que a compreendem). A crucificação do “logos” não veio para provar as más escolhas humanas e nem a perversidade inerente às suas almas. Ao contrário: a mensagem era da salvação.

E nas fileiras, aquele silêncio opressivo da instituição, também eles também compreendem outra coisa. A salvação não era a vida após a morte. Ao contrário: era a superação da morte em vida. O céu nunca foi depois. O céu nunca foi apenas harmonia constitutiva. O céu é o curso de cada um sobre o solo, num barco navegando, num objeto voador, na luz plantando, fabricando e criando.

E por isso a fragmentada igreja católica, apenas tinha o papa como governador, o resto todo é de dúvidas, conclusões e adoção militante na política do mundo. Afinal tudo, bem lá no fundo, abaixo desta ordem a serviço das elites econômicas e política da instituição religiosa, é a superação da morte em vida.  

Vamos ao caso brasileiro. Alguns jovens nascidos nos “claustros” familiares católicos, tão logo se viram diante do fabuloso mundo do renascimento ocidental, do excedente industrial que excedia em muito o que sobrava das colheitas agrícolas, da racionalidade iluminista e da ciência, entraram em profunda crise.

Uma crise que, ao invés de resolverem pela dialética de seus fundamentos em choque com a modernidade, se atolaram num vazio existencial e de ordem moral insuperável em seus “arcaicos” espíritos. Tiveram “salvação” no leito arrumado às pressas por pensadores com Jacques Maritain e tantos outros.

Daí surgiram fervorosos pensadores católicos brasileiro como o indez deste ninho que foi Jackson de Figueiredo. Um sergipano magno que explica muito bem que não importa a genialidade do invólucro argumentativo, mas o conteúdo deste. E no calor dos anos em negação do liberalismo político, as partições entre fascistas, comunistas e alguns liberais inundaram o debate nacional. Esta corrente sempre namorou o fascismo por ter um ódio constitutivo ao comunismo.

Mas entenda-se que este ódio ao comunismo pouco havia de contraponto ao marxismo, ao contrário, foi sempre a ameaça moderna às estruturas familiares patriarcais herdadas dos latifúndios que há pouco tempo havia libertado os escravos negros. E sendo, então, um movimento contra a modernidade, o caminho intelectualizado da espiritualidade católica pela via Maritain, terminou por gerar dois tipos destes intelectuais.

Um é bem representado por Gustavo Corção, um pensador católico, de texto exuberante, autor de contos e romances, mas um dos mais agressivos colunistas do jornalismo brasileiro a favor da ditadura. Corção esteve na argumentação do Golpe Militar, depois apontava os comunistas (opositores) como alvo da repressão, apoiou todas as medidas repressivas e por último exaltou o endurecimento do regime com o AI 5, a tortura e morte dos opositores ao regime. Tudo no mais irracional, acusatório e com as trevas inquisitoriais.

O outro é o liberal Alceu Amoroso Lima, que também fez esta viagem entre o vazio sentido da modernidade em oposição à estrutura familiar e a intelectualidade católica justaposta ao drama pessoal de sua juventude. Portanto, com muita influência de Jackson de Figueiredo. Alceu Amoroso foi crítico da ditadura e pautou em seus textos uma sociedade mais democrática. Aliás nesta mesma linha esteve o famoso advogado Sobral Pinto.

Bem apenas para concluir sobre os fragmentos: no auge do fascismo no mundo, quando Hitler e Mussolini eram o exemplo de melhor governo, aqui no Brasil Plínio Salgado, emergiu daquele mesmo caminho citado e chegou ao seu integralismo. Muitos padres jovens entre os anos 30 e  40 formaram fileira com os integralistas, como o Padre Hélder Câmara, um dos maiores líderes da oposição à ditadura militar brasileira. Um exemplo de fundada evolução histórica.


E sempre houve, desde muito antes, os religiosos e pensadores católicos que optaram pela luta democrática, por ampliar o progresso material de toda sociedade em oposição às estruturas que atrasavam este progresso: latifúndios, concentração patrimonial, privilégios de classe, a situação degradante dos camponeses, os miseráveis das cidades etc. O máximo desta vertente foram os frades Dominicanos: Frei Betto e o Frei Tito de Alencar.  

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Um texto de Rejane Gonçalves- Grande escritora!

 

 

O jogo
Procura-nos a Morte quando já somos tão pouco.
Quando o que nos dá a condição, senão a possibilidade de seguir ao lado dessa gente, é apenas um corpo semelhante aos que do nosso lado passeiam. Todavia mover os pés nesse ritmo próprio do caminhar, trotar com essas criaturas de uma calçada à outra, não nos confere a imponência de um puro sangue, nem tampouco oferece à Morte a garantia de que apertará nos braços um indivíduo, ainda, senhor absoluto dos seus restos de sonh...os, ânsias e quereres.
A Vida matreira e ladina com suas mortes cotidianas, sutis, mas atrozes, a nos infligir, dificilmente entrega um corpo cujo espírito ainda esteja envolto na integridade de suas emoções. Ela - que dispõe e impõe - olha da janela envidraçada a ridícula figura da Morte que ao se abaixar para pegar o fardo o faz sempre com a convicção de que o peso a ser suportado vai ser imenso, e ao levantar-se com um urro, como que para se ajudar, acaba desequilibrando-se devido à leveza da carga. Nesse momento, Vida e Morte, igual duas velhas comadres que estivessem em abstinência da companhia mútua, cruzam os olhares ávidos de uma para a outra calçada; e gesticulam e gritam e gemem e movem-se como se existisse uma fluidez ao abraço ou à trincheira. As duas comadres enfrentam-se.
E nós somos um leve embrulho arremessado no ar num jogo frenético, destituído do calor das torcidas e da sonoridade das multidões. Bola disforme jogada cada vez com menos precisão de Uma para a Outra, até que a Morte, a mais sensata dentre elas, lembre-se de sua tarefa milenar, bote-nos debaixo do braço e saia praguejando.

(rejane gonçalves) - abril 1988
- texto publicado no "ZUMBIDO" (saudoso Zumbido), jornal dos funcionários da Agência Dantas Barreto/Santo Antônio

 (Banco do Brasil) -


Trabalhei com Rejane G Santos, na Ag. Dantas Barreto, em meados da década de 70.Amiga querida , em todos os tempos. Figura que nos norteava nas leituras, músicas, filmes, e em tudo que expressava arte  e visão sistêmica do mundo. A palavra de Rejane  é sempre  uma verdade cristalina para mim, até  quando ela faz ficção.

Tudo que você escreve, Rejane, é do nosso agrado!