por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



terça-feira, 1 de novembro de 2016

JUDEU EM SÃO PAULO - DR. DEMÓSTENES RIBEIRO

Aquele dezembro nunca mais sairia de mim. Ao completar dezoito anos e conseguir os documentos, eu deveria enfrentar o mundo. O arraial e a agricultura não me mereciam mais. Desde o tempo do meu avô era o Amazonas, o Maranhão ou São Paulo. Mas, se o Tio Fausto findou-se nos seringais e se o meu pai foi pro Maranhão e a malária o enterrou por lá, a saída era São Paulo.

- Viu como o Galdino vive feliz? Gordo, corado, roupa bonita e fala diferente, nem parece o matuto que saiu daqui. Trabalha numa usina de açúcar e álcool em Ribeirão Preto, ele certamente o ajudará.

Salgueiro, Conquista, Valadares, Taubaté, São Paulo... A sorte, o sul, a estrada, quase três dias depois, o semi-leito chegava a Ribeirão e encontrei o Galdino. Ele era chefe de turma, controlava os bóias-frias e logo eu estava entre eles, morando no barracão e cortando cana de sol a sol. Meu Deus, a vida no arraial era bem melhor.
Lembrei do Luiz Marcondes, acertei as contas no armazém e fugi prá São Paulo. Diziam que ele trabalhava num banco e morava em Santo Amaro. Fiquei surpreso, pois Lula morava num quartinho com outros baianos, de dia dormia num colchonete e à noite, na Avenida Paulista, fazia faxina de escritório. Morreu ingênuo e bom, pra sempre um escravo no norte e no sul.

Desempregado, eu quase me desespero até conseguir ser auxiliar de limpeza num prédio suspeito do Largo do Arouche. Anos depois, era o porteiro da noite. À tarde, antes de entrar no trabalho, sob a garoa, vagava pela Praça da República, lia cordel e ouvia Jackson do Pandeiro em lojas de discos na Ipiranga e na Avenida São João. Num desses dias, assisti o Joelma pegar fogo e o desespero das pessoas em chamas saltando para a morte.

Dormia pouco e voltei a estudar. Sara Levy, professora de História, se impressionou com a minha memória, o meu interesse pela leitura e o meu espírito inquieto. Aos poucos, terminei o segundo grau. Ela me achou parecido com um vizinho, me arranjou emprego de frentista no posto de gasolina do Isaac e me indicou uma pensão. Hoje moro no Bom Retiro e me sinto à vontade no bairro.

Sara é gordinha, ruiva, míope e num domingo me surpreendeu convidando-me a almoçar com seus pais. O seu pai me achou parecido com um parente distante e disse que no Nordeste houve miscigenação judaica. Ele me ensinou que no Brasil o descobrimento e a colonização devem muito aos cristãos-novos e que naquele tempo os judeus eram a elite intelectual da península ibérica. Com a perseguição da inquisição, Portugal e Espanha nunca mais se acertaram.

Ela me emprestou vários livros e o que rola entre nós não é somente amizade. Iniciei um curso de judaísmo e agora sei que os hebreus criaram o monoteísmo, aboliram o sacrifício humano como tributo aos deuses e que os dez mandamentos formam a base da civilização ocidental.

O Senhor não se esqueceu de mim. Hoje sou chefe dos frentistas e ando muito entusiasmado. Aos poucos vou me descobrindo. Fiz circuncisão, não trabalho aos sábados e frequento regularmente a sinagoga. O rabino aguarda o meu teste de DNA. Se revelar algum traço israelita, me casarei com Sara, e seu Moisés vai dar uma grande festa.

Porém, meu sonho mesmo é abrir uma sinagoga em Juazeiro e voltar pra minha terra. Aqui, quase não saio, quase não tenho amigos - mais uma rês desgarrada na multidão boiada caminhando a esmo.

Agora, o tempo inteiro, imagino a cara da minha mãe quando eu voltar pro Juá, com a barba batendo no peito, o quipá na cabeça e a estrela de Davi tatuada no braço: Vixe! Sei que os romeiros vão ficar furiosos, mas eu não sou um perdedor: Shalom!

DR. DEMÓSTENES RIBEIRO (CARDIOLOGISTA)

 


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