por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quarta-feira, 7 de outubro de 2015

TEMOS PAPA, VIVA O PAPA ! - Demóstenes Gonçalves Lima Ribeiro (*)

Aos prantos, ela se jogou ao pés do Frei Abelardo e implorou para que a criança ficasse. Era mais um menino consagrado a São Francisco, vestindo marrom desde o nascimento e que a mãe não tinha como criar. Percebendo minha comoção, o superior aceitou, mas que eu me responsabilizasse.

Aparentava sete anos e se chamava Raimundim. Logo, os moleques o apelidaram Perna-Santa – apesar do defeito, corria, driblava e chutava de maneira surpreendente. Quem sabe, dali não brotasse um novo Chagas, aquele que começou no Salesiano, brilhou no Treze, voou pra Roma e envelheceu nos braços de uma condessa italiana. Mas, se ele ia bem no futebol, na alfabetização era um desastre. Sempre o pior aluno, jamais a pendeu a ler e a escrever, independente do esforço e de diversas tentativas pedagógicas.

Com o tempo, me convenci de que era impossível alfabetizá-lo e ordená-lo frade. Além disso, como se agravaram o defeito na perna e um problema na coluna, o sonho do futebol foi embora. No entanto, sempre de batina marrom, adorava limpar o altar, tocar a chamada da missa, responder ladainha, sacudir o turíbulo e estar à frente nas procissões. Tornou-se um agregado da Igreja e virou irmão Raimundim.

Memória prodigiosa, ele sabia de cor os evangelhos e nenhuma liturgia lhe faltava. Na Semana Santa, apoderava-se da matraca na procissão do Senhor Morto e ficava a noite inteira ajoelhado na Sexta Feira da Paixão. Ninguém na Ordem Franciscana conseguia acompanhá-lo, E assim continuou até quando Frei Abelardo faleceu e eu fui promovido a pároco.

Curvado sobre a bengala, barba e cabelos brancos, Raimundim envelheceu precocemente, tão longe aquele menino que eu vislumbrava um craque. Ao saber que Bento XVI renunciou, ele se recolheu em orações, aumentou as penitências, não comia nem dormia, cada vez mais introspectivo e solitário.

Certo dia, o Bispo convocou o clero pra orientações no período da vacância papal. À tarde, quando voltei, percebi algo estranho, um povaréu imenso ia da estação ferroviária à Igreja dos Franciscanos. Mil fogos espocando, banda de pífanos, bacamarteiros e maneiro-pau. O badalar dos sinos e um mar de braços erguidos num ondular de chapéus e gritos ritmados de “temos Papa, viva o Papa, temos Papa...”.

A muito custo, atravessei beatas ajoelhadas e, penitentes em flagelação. Cheguei à sacada da Igreja e constatei perplexo: era ele mesmo, agora sem marrom, mas de batina, estola e solidéu brancos. O crucifixo pendia do pescoço e Raimundim abençoava a multidão que ecoava “temos Papa, viva o Papa, temos Papa...”.

Retomei o fôlego, olhei no azul dos seus olhos e fulminei colérico: o que é isso Raimundim, pode me explicar que loucura é essa ??? Sereno, ele fitou-me com extrema gravidade e falou para que só eu escutasse: Oxente, Frei Serafim, eu ia deixar os romeiros sem Papa ???



(*) Demóstenes Gonçalves Lima Ribeiro (médico cardiologista, nascido em Missão Velha, residente e exercendo a profissão em Fortaleza)

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