por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Arca



J. Flávio Vieira

                                                        Passados tantos anos, as imagens se vão turvando, surpreendidas, aqui e ali,  apenas pela fresta da saudade. A ausência, antes dolorida como uma chaga aberta, foi, aos poucos , se anestesiando, bafejada pelo bálsamo do tempo, mas a cicatriz  permanece ainda sensível como um queloide. A vida, depois do cataclismo, precisou ir tomando jeito. Recolhidos os estilhaços do cristal esfacelado, tentamos recompor o amálgama dos dias e das horas. Restou-nos o ranço final do caju sorvido , esse travo que  lutamos para não obscurecer o dulcíssimo sabor da polpa que o antecedeu. Afinal, a vida talvez seja exatamente isso : a capacidade de se ir reconstruindo nosso mundo a cada dilúvio prenunciado, catando e depositando na Arca os nossos despojos de guerra.
      
                                                               Fecho os olhos e tento te imaginar nonagenário, como serias hoje. O tempo te teria sugado todas as forças ? Manterias o vigor mínimo para apreciar os milagres da existência ? A inexorabilidade dos dias te levaria a um estágio no reino vegetal antes da mineralidade extrema, destino de todos nós ? Serias um velhinho lépido, com um mínimo de dignidade, ou apenas mais um objeto de decoração da casa ? Fecharias o ciclo da vida, retornando à outra extremidade da infância, ou obterias o privilégio da lucidez, do bom humor e da resignação que sempre te foram fortes aditivos  existenciais ? Desfrutarias de  uma vida ou apenas de  sobrevida ?

                                                               Estas perguntas ferem-nos como um punhal, talvez porque carreguem consigo a impossibilidade de resposta. Pesa-nos a certeza da imponderabilidade de tudo, do amálgama perecível dos segundos, da finitude líquida e fluida dos casos , ocasos e acasos. Nossos sentimentos assentam seus  sonhos de perenidade  na  amorfa e gelatinosa  nuvem da impermanência. Resta-nos, tão-somente, curtir cada vidrinho do cristal despedaçado , onde vemos refletido o divino acaso que nos pôs juntos na mesma viagem. Ali o caquinho do teu perene bom humor e que terminou contagiando toda a família. Acolá o fragmento do teu despojamento, pronto a enfrentar as vicissitudes sem a seriedade que elas pretendem nos exigir. Adiante o estilhaço da tua complacência ante o sofrimento e a perspectiva do abismo. Ao lado o pedacinho da tua inteligência que ainda reluz como se permanecesse imantada. Aos poucos refazemos o cristal que um dia embelezou esse mundo com seu brilho e sua transparência. Até parece que um dia não se esfacelou ante os arroubos do tempo. Ganha até um certo ar de perenidade, sempiternos fragmentos ungidos pela cola da Saudade. 

6 comentários:

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Eis um texto que preenche tão bem a ação do comentário naquilo que ele tem de memória e que nos deixa sem condições de acrescentar algo. Mas uma coisa é certa: é muito raro um filho, como nesta postagem, falar do pai como o outro. Normalmente em nossa cultura há uma dependência e uma hierarquia que nunca se acaba. Como também é muito difícil na cultura nordestina que um filho do sexo masculino demonstre sentimento com o pai igual a tudo isso que foi lido. Normalmente a educação, a posição do orientador distancia a emoção através de tantas normas e disciplinas que a resultante é a frieza de carinho entre pai e filho pelo menos na aparência. Inclusive por considerar a boa técnica do escritor é interessante se observar o quanto o personagem revelado, mesmo como estilhaços do tempo, é um todo instigante e envolvente que constrói a própria expressão do autor. E ao renascer nesta expressão demonstra claramente a continuidade conceitual entre o finito e o infinito.

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Eis um texto que preenche tão bem a ação do comentário naquilo que ele tem de memória e que nos deixa sem condições de acrescentar algo. Mas uma coisa é certa: é muito raro um filho, como nesta postagem, falar do pai como o outro. Normalmente em nossa cultura há uma dependência e uma hierarquia que nunca se acaba. Como também é muito difícil na cultura nordestina que um filho do sexo masculino demonstre sentimento com o pai igual a tudo isso que foi lido. Normalmente a educação, a posição do orientador distancia a emoção através de tantas normas e disciplinas que a resultante é a frieza de carinho entre pai e filho pelo menos na aparência. Inclusive por considerar a boa técnica do escritor é interessante se observar o quanto o personagem revelado, mesmo como estilhaços do tempo, é um todo instigante e envolvente que constrói a própria expressão do autor. E ao renascer nesta expressão demonstra claramente a continuidade conceitual entre o finito e o infinito.

jflavio disse...

Agradeço ao Dedé pelo comentário. Ambos somos suspeitos nesse caso. Sempre tive imensa dificuldade em escrever sobre as pessoas que me são mais próximas e queridas. Existe uma barreira natural, como se me fosse impossível expressar com a falibilidade das palavras todo o sentimento envolvido. Fico preso entre os grilhões do laudatório e do piegas. Juntar os estilhaços sempre me parece difícil e penoso.

socorro moreira disse...

Curti o texto com total envolvimento.
Abs, aos meus dois queridos Zé!

Carlos Eduardo Esmeraldo disse...

Caro Zé Flávio

Certa vez, quando lhe indaguei sobre um "causo" que se passou com o seu pai, você me respondeu alguma coisa como que não se sentia a vontade para falar sobre o "velho". E tinha razão. Você reuniu as belas palavras que a língua portuguesa possui para formar um dos mais belos poemas de amor filial. E com um tão alto nível de sensibilidade, que nos contagiou a todos, como se essa fosse a homenagem que gostaríamos de prestar aos nossos próprios pais. Que bela demonstração! Parabéns!

jflavio disse...

Abraço, Carlinhos e obrigado pelo comentário. Fico feliz. Este travo é grande e curti muito, seu texto, na época, justamente pela dificuldade que tenho de escrever sobre meus entes mais queridos. Abração!