por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quinta-feira, 18 de julho de 2013

Ariado



J. Flávio Vieira

                                               A história de Zé Felipe não se fazia tão diferente  de muitos outros caminhoneiros Brasil afora. Começara com uma pequena Rural transportando feirantes de Matozinho para cidades vizinhas como Bertioga e Serrinha dos Nicodemos. Aos poucos o negócio foi progredindo  e Zé comprou uma caminhonete, depois uma sopa e, já nos anos quarenta, terminou adquirindo seu primeiro caminhão, ramo em que acabou se fixando pelo resto da vida. Estradas de barro , esburacadas, íngremes, tortuosas,  a profissão era uma aventura digna de um  Fernão Dias Paes Leme. Acostumara-se àquela vida de peregrino, de judeu errante. Mesmo velho, por inércia, já era impossível parar.Transportava cargas sem destino previsível, de um ponto a outro do país. Muitas vezes passava  mais de seis meses sem retornar a Matozinho.  A família não tinha nenhuma notícia de Zé neste período. A única comunicação possível seria via telegráfica e saltando de cidadezinha em cidadezinha, pelos ocos mais inóspitos do Brasil, até esta via se mostrava inexeqüível. Restava aos familiares a saudade e a prece.
                                   Cada retorno de Zé , assim, inundava a vila de alegria, comemorava-se o feito de um herói, como se ele houvesse escalado o Everest ou pisado pela primeira vez no Pólo Sul, como Amundsen. Por outro lado, Felipe vinha também como um Marco Pólo, trazendo notícias e histórias de terras distantes e quinquilharias para vender ao povo de Matozinho: últimas novidades da civilização.  Quando o velho caminhão Mercedes  apontava na descida da Serra da Jurumenha, a vilazinha exultava. Junto de Zé , seu eterno ajudante : Tico Biroba. Eles faziam uma dupla perfeita: D. Quixote e Sancho Pança da Caatinga. As histórias de Felipe ainda hoje inundam o imaginário de Matozinho, tantos anos depois, pelo inusitado, pelo humorístico, pelo doce tom de irreverência.
                                   Cada curva da estrada escondia perigos insondáveis. Felipe computava inúmeros acidentes na profissão. O maior deles , no início dos anos cinqüenta, uma capotagem terrível nas montanhas das Minas Gerais, quase dá cabo dele e de Biroba. Escaparam,  mas o caminhão destruiu-se, em tempos em que seguro de carro  inexistia. Zé ficou com uma mão no cano e outra no feixe, triste e desiludido pelos cantos. Escreveu então a Getúlio Vargas, então presidente, contando o infortúnio por que passava, agora, inclusive, sem mais ter como sustentar a família. Dias depois recebeu, por incrível que possa parecer, uma resposta do Catete. O presidente lhe ofertava um outro caminhão para que continuasse a vida nômade. Felipe recebeu-o no Rio de Janeiro e  escreveu no pára-choque uma frase que demonstrava toda  sua gratidão : “Esse foi Getúlio quem deu !”
                                   Varando as tortuosas estradas do Brasil,  por tantos e tantos anos, Felipe conhecia cada buraco. Familiarizara-se com mecânicos, borracheiros, bodegueiros, motoristas por tudo quanto é de biboca desse país. Bom papo, cheio de presepadas, conheciam-no nos lugares mais ermos, como se fora uma reencarnação de Pedro Malasartes.  Suas peripécias corriam de língua em língua e até foram , um dia, imortalizadas em um cordel atribuído  ao poeta Pedro Pito. Foi do cordel esgotado de Pito que arrancamos algumas dessas histórias  que deixamos registradas aqui, na esperança que este texto tenha mais durabilidade que as páginas já puídas do nosso poeta maior.
                                   Numa das suas raras permanências em Matozinho, Felipe encontrou, um dia, na feira, com Mané Mago, um varapau que morava nas terras do Cel Anfrízio, homem sério como fundo de touro e de pouca conversa. Mané passara uma época em São Paulo e, não encontrando o El Dorado, retornara a sua vila, com o rabinho entre as pernas. Trouxera, junto com ele, aquela indumentária própria para o inverno paulista e não a dispensava , mesmo no sol mais escaldante de outubro. O adereço mais chamativo era um chapelão enorme que mais parecia uma sombrinha. Foi com essa arrumação que Zé Felipe deu com ele, no pino do meio dia, na feira. Cumprimentou-o, cordialmente, mas não perdoou :
                                   --- Zé, meu amigo ! Onde é que você vai montar esse carrossel ?
                                   Zé, enfezado, saltou com quatro pedras na mão :
                                   --- No cu da mãe, Felipe ! No cu da mãe !
                                   Felipe não se enrolou :
                                   --- Bacana, Mané ! Só assim eu rodo de graça !
                                   Em uma das suas incontáveis viagens, no inverno,  o caminhão atolou feio lá pras bandas da Paraíba. Alguns  lavradores ,que limpavam uma roça próxima, reconheceram o motorista e vieram ajudá-lo. Calça daqui, cava dali, empurra dacolá , depois de umas duas horas, conseguiram, por fim, desatolar o veículo. Estavam todos exaustos e calabreados como se trabalhassem em Serra Pelada. Os lavradores eram todos de uma mesma família, residente ali próximo. Todos atarracados e com uma característica interessante, pescoço curtíssimo, como se a cabeça saísse diretamente dos ombros. Já no carro e acelerando, Zé perguntou-lhes quanto devia. Eles, solícitos, disseram que não era nada, enquanto já retornavam meladíssimos ao trabalho da roça. Saindo, Zé Felipe gritou :
                                   --- Obrigado, amigos ! Quando eu voltar de Campina Grande vou trazer um par de pescoço pra cada um de vocês !
                                   Teve que acelerar rápido, pois o palavrão e a pedrada comeram no centro !
                                   De uma outra feita, no interior da Bahia, próximo a Jequié, em plena zona rural, algumas pessoas atravessaram na estrada , pedindo socorro. Zé Felipe freou. Uma mulher contou então que o pai estava muito doente e pedia ajuda para levá-lo, no caminhão improvisado de ambulância, até a cidade.  O motorista mostrou-se solícito, mas pediu para examinar primeiro o paciente, pois se dizia experiente, já fora meizinheiro na feira de Matozinho e, quem sabe, poderia ajudar. Levaram-no até uma casinha de taipa e lá, em um dos quartos, encontrava-se um senhor  gordo, com uma barriga enorme e feio como o diabo com convulsão. Disse que estava sem desistir há mais de uma semana e não soltava um vento nem pelo amor de Deus. Zé o examinou, rapidamente e selou o diagnóstico :
                        --- Minha senhora, não é nada demais! É só um peido ariado. O cabra é feio demais e o peido fica zanzando pra cima e pra baixo :  não sabe se o cu é em cima ou embaixo !
                        Já velho, Zé Felipe, ainda em atividade, caiu doente. Pressentiu que a velha da foiçona arrodeava sua casa. Chamou Tico Biroba, o companheiro de toda uma vida e pediu-lhe que passasse com o velho Mercedes diante da sua casa e desse um apitão daqueles de ecoar na pradaria. Biroba, com os olhos lacrimejando, realizou o desejo do chefe e foi montado naquela buzina  que Zé Felipe empreendeu sua última viagem , desta vez por uma estrada escura e totalmente desconhecida.

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