Sarita adormeceu com quatro anos de idade. Leite na patinha, cortinado
na cama Gerdau, lençol de algodão azulado, cheirando às águas das levadas.
Acordou com a caixa de diazepan faltando uma drágea. Estava zonza,
desorientada. Foi até o espelho e viu um rosto de mulher envelhecido, marcado
por expressões de dor e conformismo. Seus cachos ficaram lisos, e a pele sem
viço. Deveria ter quase um século, pelo visto.
Procurou sinais de uma vida: um álbum de fotografia, um diário, uma
agenda de aniversários. E foi retirando das cotoneiras rostos desconhecidos:
mulher nova, gata pintada, bonitinha adolescente, tímida menininha. Cadê a foto
do baile das debutantes? Do casamento cristão, formatura, batizado do último
varão?
Não tinha! Era sozinha.
Onde foram parar os registros dos seus anos?
Olhou a cama de casal vazia. Nenhuma peça masculina cobrando a
presença do dono. Onde ele se escondeu, onde estaria?
Na gaveta do armário, brincos descasados, maquiagem vencida, perfume
adocicado, nauseante.
Descobriu na varanda do quarto
uma estrela cadente, uma lua sorridente tirando sarro da sua cara.
- Teu sol só chegará na eternidade, sabia?
Amanhã vai colocar cheiro de tinta fresca na casa. Casa com odores de
tempos passados.
Enquanto pensava, vestiu saia, calçou sandália rasteira, com
destino ao beco de Pe.Lauro.
O beco dos doces sapotis, e
suspiros de namorados. O beco com nódoas de amoníaco, e fezes de gatos.
As luzes piscavam de todas as praças. Procurou um banco, uma música, um
rosto conhecido... Quem sabe o dono do chapéu pendurado no armador da sala, ou do
relógio de algibeira, esquecido na penteadeira do quarto?
Fez o pelo sinal na porta da Sé, e deixou esmola pras almas. Voltou pro
seu canto, sem contos de reis.
Vai acordar todos os dias lembrando ou esquecida das vidas passadas,
entrelaçadas com aquelas do porvir.
Voltou,entrou, fechou a porta de casa, e abriu a porta do sonho.
Estava lá o engraçado, que lhe
assusta com poesias. Nunca lhe promete anel de noivado, nem bodas na
eternidade...Que ironia!
Quem é esse moço que Orfeu escolheu para sua companhia?
-Ele é presente de papel passado. Futuro amante. Amigo de verdade ou da
verdade?
Nas paralelas tudo acaba unificado, e sem carne.
Nenhum comentário:
Postar um comentário