por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

De ladeira abaixo



Rezam os anais da nossa cidade que o primeiro automóvel chegou em Crato, em 1919, por iniciativa do comerciante Manuel Siqueira Campos que terminou imortalizado,  nomeando uma das mais importantes praças de Crato. Nas décadas que se seguiram , com a pujança do nosso setor mercantil, o carro foi se tornando uma presença cada vez mais constante nas nossas ruas. Os antigos Fords Bigodes foram sendo substituídos , pouco a pouco, por modelos mais modernos : Buicks, Cadillacs, Mercedes, Mercurys, Simcas.  Após a II Grande Guerra,  começaram a chegar os caminhões que transportavam cargas , mas, também, travestiam-se de transporte coletivo interurbano. Vezes feitos pau-de-araras , tantas outras transformados em Mistos, levavam passageiros ,mundo a fora, por estradas terríveis e quase intransitáveis, num incômodo inimaginável nos dias de hoje.  Comparadas, no entanto, com as viagens longas, em lombo de animais, os caminhões traziam consigo o cheiro inevitável do novo :  maiores velocidade e conforto.
                        A tecnologia ainda primária dos primeiros veículos pesados, somada à tortuosidade natural de algumas estradas , como as que beiram a nossa Chapada do Araripe, elevavam, consideravelmente, o risco de acidentes. Ficaram famosas, na nossa região , a Ladeira das Guaribas aqui em Crato e a do Quincuncá em Farias Brito. Rodagens íngremes e extensas se associavam a fitas de freios aquecidas e terminavam desembestando caminhões, ladeira abaixo, com incontáveis vítimas. Até uns poucos anos atrás, a nossa Batateira via-se , diariamente, aterrorizada, temendo a chegada descontrolada de caminhões sem freio invadindo suas ruas e casas.
                        Pois o que vou contar vem desta época de heróicos desbravadores. Contava-se por aqui, com o exagero natural dos descendentes da Vila de Frei Carlos, esta historinha que buscava exemplificar o risco que era descer de caminhão a Ladeira das Guaribas.
                        Chagas vinha ,do Pernambuco, com um caminhão carregado de romeiros . Iam tomar a bênção ao  padrinho, pagar promessas e alimentar a indústria azeitada dos santeiros e fabricantes de rosários. Na famosa descida da serra, na altura da Barraca Verifique, o freio quebrou. O veículo começou a embalar, ladeira abaixo ,e o destino era mais que previsível: ou caía no abismo à direita ou, na melhor da hipóteses, desceria todo o percurso, equilibrado na munheca atilada do chofer e , ganhando velocidade e mais velocidade , terminaria por esborrachar-se nas casas da Batateira.  Os passageiros perceberam rápido o perigo e sojigados  entre ficar o serem comidos pelo bicho ou correr e ser pego por ele, arriscaram na segunda possibilidade. Começaram a saltar do caminhão em disparada: o desmantelo estava feito. Pernas quebradas, pescoços torcidos, pé-de-ouvidos ralados. Em pouco, tinham já pulado todos os romeiros da carroceria e da boléia. Chagas, por incrível que possa parecer, manteve-se firme na direção, aprumando ladeira abaixo. Para sua felicidade, já na proximidade das Guaribas, as rodas caíram na valeta à esquerda junto às  escarpas do Araripe. Adiante , perdendo carreira, as rodas travaram num grotão e o carro, por incrível que pareça, parou, ao arrastar o diferencial  pelo chão.
                                   Atrás , tinha restado um rastro de destruição. Romeiros feridos, ex-votos espalhados, alguns corpos sem vida. Aos poucos, os acidentados foram levados ao hospital, por carros que iam passando. Chagas permaneceu, ainda, por muito tempo, na boléia, sem entender o que tinha acontecido e deixado de acontecer. Uma viagem tão tranqüila! Como, de repente, se estabelece tamanho caos ?
                                   Uma hora depois chegou ao local um radialista. Resolvera entrevistar o  chofer, quando soube  da tragédia, através das vítimas que atulhavam a emergência do hospital. Aproximou-se o repórter do motorista e interrogou-o sobre o inusitado da cena:
                                   --- Amigo ! Parabéns, quanta perícia ! Você é um herói, meu chapa !Mas me diga uma coisa, por que você não fez como os passageiros e pulou do carro ?
                                   Chagas, ainda capiongo e confuso, explicou:
                                   --- É que eu carrego pregada aqui no tabeliê do carro, próximo ao volante, uma imagem do meu santo de devoção : São Cristovão ! Com ele, meu amigo, pra mim não tem tempo ruim !
                                   O radialista subiu na boléia , curioso em conhecer o santo milagreiro:
                                   --- Cadê o santo ? Me mostre !
                                   Chagas  escascaviou todo o quadro do caminhão e não encontrou o santo. Procurou embaixo --- poderia ter caído nos solavancos--- e nada ! Olhou, então, convicto  para o repórter e concluiu:
                                   --- O negócio foi mais feio que briga de foice no escuro. Pois na hora do pega-pra-capar, meu senhor, não é que até São Cristovão pinotou fora também,  pra num ver o destroço !



J. Flávio Vieira

3 comentários:

socorro moreira disse...

Demais!
Sou desse tempo!

Abraços.

Stela disse...

Adorei essa história de São Cristovão "pinotar" pra fora do caminhão. O motorista era mesmo espirituoso, hein Zé Flávio?

jflavio disse...

Abraço a socorro e a Stella, leitores/escritores tão especiais.