por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quinta-feira, 3 de maio de 2012

Favela



                               A grande explosão das Redes Sociais trouxe consigo seus efeitos deletérios como  a chatice desenfreada das frasinhas de auto-ajuda, da religiosidade rasteira, das abobrinhas em larga escala. Mas, com o quadradismo com que os anos me foram achatando, tenho que reconhecer alguns benefícios inequívocos: a reaproximação de colegas e conterrâneos distantes e  , nos grupos, a democratização das fotos antigas do Crato. Recentemente, foi publicada uma que me pareceu interessantíssima. Mostrava o Crato Tênis Clube nos anos 60, com dois políticos locais importantes sentados numa mesa, num jantar festivo. Seguiram-se à foto uma imensidão de comentários afeitos todos às figuras importantíssimas que estavam no primeiro plano, numa homenagem, diga-se, justa e merecida. Pus os olhos na fotografia e, de chofre, divisei, no segundo plano, personagens que até então tinham sido totalmente esquecidos, dois garçons famosíssimos na cidade : Fuinha e Iguatu. Acredito que eles representam um pouco a tônica do meu pobre trabalho de cronista, aqui na região, nestes quinze anos em que venho escrevendo com alguma regularidade. Tenho a vista voltada sempre para o lado oficioso da cidade, até porque já existem historiadores de grande envergadura, bem mais abalizados,  para narrar a face mais visível e oficial desta terra. Interessa-me a face oculta: os poetas, boêmios, místicos,loucos, artistas  e beatos porque pressinto que  se a história oficial dá corpo à Vila de Frei Carlos, são estes outros que lhe imprimem a alma.
                                               E , neste sábado, venho fazer uma grande reverência a uma das figuras mais irreverentes deste Crato. Chamava-se  Manoel Favela Pantaleão, mas era conhecido, por todos os recantos dessa cidade, pelo sobrenome intermediário : Favela. Nasceu em Exu em 20 de Maio de 1924, há exatos 88 anos. Ainda rapazinho veio para o Crato e aqui fez o seu reinado. Alma boêmia, tornou-se músico e tocava seu instrumento nos cabarés da Rua da Saudade e, depois, acompanhou a saudosa rua nas suas mudanças , à medida que foi sendo engolida pelo progresso. Violonista admirado e incensado-- diziam que arpejava o violão até de cabeça para baixo-- junto com Pedro 21, tornou-se um mito. Levou seus acordes ainda para o nomadismo dos circos que por aqui passavam, acompanhando-os Brasil afora. Junto com a música foi tecendo toda uma mitologia de presepadas e chistes que terminaram por impeli-lo à área do folclore. Esposado pela Boemia, como bom Homem da Noite, nunca casou, teve um relacionamento com uma das saudosas Damas de Vermelho e ficaram   dois rebentos que hoje lutam pela vida no Sudeste.
                                               Favela foi, durante toda vida, um boêmio profissional, morava sozinho e, já velho, ainda utilizava todo dinheiro da aposentadoria com as bebidas e as mulheres. Há uns dois anos, foi premiado no Cariri da Sorte : mais de 30.000 Reais lhe caíram nas mãos. As sobrinhas orientaram-no para fazer uma poupança, guardar para os dias futuros. Favela não tinha vindo ao mundo como formiga, mas sim como Cigarra e respondeu-lhes com uma pergunta da mais profunda filosofia hedonista : Guardar ? Para levar para onde, meninas ? Meteu-se novamente em meio às namoradas e o álcool e não sossegou até transformar todo o pretenso tesouro em puro prazer.
                                               São inúmeras as presepadas que se foram colecionando a seu respeito. Vou elencar apenas algumas, na certeza que quase todo cratense que com ele conviveu, sabe de alguma munganga dessa figura célebre.
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                                               Favela gostava muito de freqüentar o Café de Roseno que nos anos 50-60 existia na Rua Bárbara de Alencar, onde hoje é o Ponto Dentário do inesquecível Maurício Almeida. A razão era simples, adorava um Doce de Banana de Botão que lá vendiam. Um dia , lá chegando, fez o pedido da terrina de doce e quando começou a comer, teve dificuldade de mastigar. Tinham usado bananas muito verdes e as rodelas tinham ficado duras demais para serem trituradas pelas próteses dentárias de Favela. Depois de alguns minutos, tentando em vão, rodando as peças de um lado para outro, ele reclamou cheio de razão:
                                               --- Não ! Não tem quem coma isso não! Eu pedi, Roseno, foi  doce de Banana, não foi Pedra de Gamão, não !
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                                               Antonio Favela , um irmão dele, trabalhava na Cantina do Oliveira e adorava ralhar com Manoel.  Um dia, vendo-o passar do outro lado da rua, resolveu mexer com ele e mandou o clássico xingamento :
                                               --- Manoel ! Vai ali na Praça Siqueira Campos prá ver se eu tou lá !
                                               Manoel, sem se alterar , responde na bucha:
                                               --- Vou já, Antonio, mas tenho que passar em casa primeiro !
                                               --- Em casa ?  Por quê ? -- Quis saber o irmão.
                                               --- Por que se tiver um cabestro eu já levo, prá não dá  duas viagens !
                                               Favela voltava de madrugada, violão às costas, após o show no Cabaré, quando foi abordado pelo terrível Major Bento. O militar foi um delegado violento da cidade que, numa determinada época, estabeleceu um Toque de Recolher por aqui. Vendo o músico quebrando o Toque, na rua àquelas horas , o abordou grosseiramente. Favela, então, explicou que era músico , que tocava nas Casas Noturnas da cidade e que  estava, pois, a trabalho à noite, aquilo era seu meio de vida. O Major não quis saber, ríspido falou:
                                               --- Me acompanhe, cabra !
 
                                               Favela, de pronto, sacou o violão das costas, dedilhou as cordas e respondeu:
                                               --- Pois não, Major! Em que tom ?
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                                               Antonio Primo de Brito é uma das memórias mais prodigiosas desta cidade e  foi grande amigo de Favela. A mor parte destas histórias foram  a mim repassadas por ele. Um domingo, Favela chegou cedinho na  casa do ex-prefeito . Pediu R$ 100,00 emprestados. Precisava pagar uma dívida de última hora. Antonio Primo  remexeu os pertences e só encontrou R$ 50,00. Meio a contragosto avisou-o da triste novidade. Favela não se enrolou:
                                               --- Tem problemas ,não, Antonio! Me dê os R$ 50,00! Você é um homem direito e vou confiar em você, depois você me paga os outros R$ 50,00.
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                                               De outra feita, Favela acompanhou a seleção do Crato que aí pelos anos 70 ia jogar em Baturité. O motorista do ônibus de carreira era uma outra figura antológica : Moço Lídio. O coletivo vinha apinhado de passageiros e viajava à noite. Favela—que tinha problemas de dormir naquelas horas—resolveu ir lá para frente, ficou sentado conversando com o motorista. Já chegando na cidade de Independência, numa grande descida da serra, o carro deu um estralo e embalou, ladeira abaixo. Tinha quebrado o freio. Moço Lídio foi aprumando e sustentando o veículo como podia, para ver se conseguia chegar à cidade de Independência, lá embaixo, o que seria a única salvação possível. Favela manteve-se impassível. Nisto, uma senhora passageira percebeu o estralo estranho , a velocidade e o risco que estavam passando, correu lá prá frente aflita e gritou:
                                               --- Valei-me meu Deus ! Motorista,  o que isso significa ? Diga !
                                               Favela, sentado, tranqüilo, resumiu para ela o problema:
                                               --- Ora, minha Senhora : Independência ou Morte !
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                                               No dia doze de janeiro último,  o violão silenciou. A velha Rua que um dia chamou-se Saudade perdeu uma de suas vozes mais poderosas. E a história sentimental da vila que um dia foi tão fértil e verdejante , hoje , mais que nunca , se transformou em Favela.

J. Flávio Vieira

5 comentários:

Stela disse...

que delícia de texto!
Zé Flávio você tem toda razão: pessoas como Favela (que tive o prazer de conhecer agora) são muito importantes numa cidade, são tipos sociais que retratam não o pitoresco, mas o humano, com suas peculiaridades e riquezas.

jflavio disse...

Abraço a Stela pela paciência reiterada em ler textos tão compridos.
Abraço,
Zé Flávio

socorro moreira disse...

Como é que pode, Zé Flávio?
- Eu não conhecia Favela...
Depois desse texto ele ficou vivo.
Perigosamente maravilhosas as escritas deste escritor!

Abraços.

Anônimo disse...

UM REGISTRO DE FATOS DO COTIDIANO
NUMA CRÔNICA TÃO BEM ELABORADA. A
PRESENÇA DE ESPÍRITO DE FAVELA, NA
SUA NARRAÇÃO, É CONTAGIANTE.
DELEITEI-ME COM O ESCRITOR O MÉDICO E O POETA QUE VC. ENCARNA. OBRIGADA
PELO PERTINENTE TEXTO

BASTINHA JOB

jflavio disse...

Abraço a Socorro e Bastinha que carregam consigo a boêmia tão presente em Favela