por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



segunda-feira, 12 de março de 2012

Mistérios da Insegurança - José do Vale Pinheiro Feitosa

Um mistério não é uno. O mistério é uma juntada de muitas coisas. Algumas evidentes, outras semi-escondidas e muitas inteiramente ocultas. Na verdade esta classificação se deve muito mais à dispersão dos fatos que formam o mistério. Fatos dispersos no tempo, no espaço e NA intensidade com que nos são memorizados e recordados.

Quem nasceu e vive uma vida feliz, choca-se com a morte. A primeira vez quando em criança toma consciência da mortalidade aquilo é profundo e escuro como o medo. Isso fica lá na inconsciência como uma música gravada, basta apertar um botão e ele tocará.

Nos tempos passados, especialmente na zona rural as crianças eram assombradas com as almas dos antepassados, de pessoas conhecidas ou pessoas esquecidas. As horas altas da noite, especialmente após as doze badaladas, a insegurança com o além atingia o ponto máximo.

De todos os atos tenebrosos o mais arrasador era o assassinato. O ódio rompendo leis humanas milenares até a destruição do outro. Neste ponto a arma utilizada se reveste de uma intensidade de maldade cuja narrativa é própria a cada instrumento.

Por último, nesta dispersão que forma o mistério vem o acordar-se na alta madrugada para quem no sono se afastava das noites inseguras. O simples ato do despertador tocar já eleva os batimentos cardíacos à casa das centenas. E após este desequilíbrio fisiológico o levantar-se da cama se torna pesado e impreciso.

Agora temos o mistério. Servindo ao exército brasileiro, tinha que acordar-me às 4:30 horas da madrugada, tomar um café puro e com alguma frequência enfrentar à pé três a quatro quilômetros a maior parte dos quais na escuridão de estradas vazias.

Numa destas madrugadas elementos da composição do mistério se juntaram no meu despertar. Era uma madrugada chuvosa, passara a noite toda chovendo e tudo estava úmido na hora de levantar-se. No final da tarde do dia anterior fora assassinado na sua bodega, um senhor que a localizara bem num corte do morro, naquele ponto em que estrada se estreita entre os taludes feitos na sua construção.

Sai de casa numa madrugada fria, orvalhada, desamparado dos meus cobertores, das paredes e do teto do meu quarto. Sai naquela pisada de quem precisa acelerar para romper mais rapidamente aqueles momentos de solidão e desamparo.

O maldito chão molhado, especialmente na estrada de piçarra, chiava aos meus passos com tanta intensidade que promoviam um eco às minhas costas como se passos fantasmagóricos me acompanhassem. As costas são um elemento central no mistério: lá não existem olhos e o de repente se beneficia com a surpresa.

O talude se aproximando e a rústica edificação da bodega se tornando uma silhueta lá na frente a me esperar. Tangido pelo eco dos passos a me acompanhar, com a coragem aos frangalhos e a toda prova, literalmente lançava meu corpo para frente como quem se joga num precipício.

E a psicologia em defesa da situação passa a promover uma desatenção compensatória para os objetos que nos ameaçam. Naquela altura a silhueta da bodega estava no canto do meu olho direito, mas eu mirava o centro da estrada como forma de não cair na arapuca do mistério.

Nenhuma luz havia no prédio. O finado, ainda vivo na madrugada anterior, passara a noite ali apenas para vigiar seu negócio. Seu corpo estava no bairro próximo. Eu o conhecia, mas não queria lembrar os detalhes. Seu rosto, sua voz, sua postura atrás do balcão. Nem a porta da bodega eu queria compreender. Deixando a bodega semi-apagada no canto do olho direito.

Sem poder retroceder, os passos ecoando no talude do corte da estrada, um frio subindo e descendo pelo espinhaço, não medi conseqüências. Fui atravessando o mistério impreterível, de uma maneira irrefletida e sem medir conseqüências. Meus passos não correram e nem diminuíram, foram ultrapassando o buraco da morte e das almas.

Quando cheguei em frente ao que era o Seminário da Sagrada Família a minha segurança estava ampliada: a abertura da paisagem pelo lado seminário, casas no bairro do Recreio no outro lado e ter ultrapassado aquele corte que me pôs a toda prova.

2 comentários:

Ângela Lôbo disse...

Depois de passados muitos anos, a gente consegue rir do episódio. Conheço pessoas que, nos dias de hoje, ainda têm medo de alma penada. Outro dia fiz uma viagem a Aurora, onde estão enterrados meus avós e tios do lado paterno, e ficamos horas a conversar sobre as "botijas" que existiram na região e foram desenterradas para liberar alguma "alma" que estava sofrendo.
Confesso que, naquela noite, custei a conciliar o sono.
Ao ler o seu texto, pude medir a intensidade do seu medo. E corri junto para o aconchego da paisagem segura.

socorro moreira disse...

Eu tinha fama, quando criança, de destemida...
Tinha que ir na cozinha com lamparina pegar água pros que estavam na calçada contando histórias de "almas". Mas a verdade é que eu também sentia medo...
Como nunca nada me apareceu fui fortalecendo a minha coragem, e passando a ter medo de gente viva.
Essa é capaz de alguns absurdos.

Nada é mais seguro ...
Mas é bom viver sem pânicos.