
Dona Escolástica  até tinha o direito de implicar com a sonoridade do seu nome . Ele  terminava por lhe imprimir um ar de austeridade  monástica .  Pronunciado , mesmo carinhosamente, já soava como uma ordem do general para o samango. Aquilo era epíteto pesado demais para uma pessoa só, devia ser carregado, não por ela, mas  por toda uma escola filosófica, pensava consigo mesma. A opinião de Escolástica, no entanto, não era compartilhada por seus conhecidos. Havia um consenso entre todos  os amigos :  mais que um nome , aquilo tinha sido quase que uma premonição do velho Patápio Brandão Peixoto, o pai dela. Escolástica, desde nova, mostrara-se de uma determinação e um vigor impressionantes. Despachada, nunca levou desaforo para casa e jamais precisou de ajuda de quem quer que fosse para resolver suas questões. Menina, já detinha o título de terror da rua e os meninos tinham mais medo dela do que da palmatória dependurada no armador da sala. Cresceu com a mesma impulsividade da infância e levou para a adolescência e a vida adulta aquela independência invejável. Fez-se professora primária  e os alunos temiam mais a mestra do que os pais.
Toda intrepidez já precoce de Escolástica fez com que  os homens dela se afastassem,  como o capeta de água benta. Quase não teve namorados e  casou coroa,  já engatilhando os últimos cartuchos da macaca. O marido , Serginaldo, era barbeiro e um barriga-branca convicto. Diante da esposa,  era autorizado a pronunciar apenas algumas palavras básicas : Sim , senhora ! Já vou ! Apois tá certo ! Você  é quem sabe !  O casal teve apenas um filho que , para manter a tradição, envergou o pomposo nome bíblico de Absalão. A escolha do nome do filho transparecia uma outra faceta da nossa professora: beata piedosa , fazia do debulhamento de terço e mergulho em pia de água benta seus esportes prediletos. As más línguas até comentavam que o motivo de Absalão ser filho único, vinha da necessidade de fornicação para fazer menino: Escolástica não podia aceitar um escandelo desse tamanho e deve ter ficado aguardando o Anjo Gabriel anunciador da segunda gravidez -- essa sim totalmente livre das impurezas do coito.
A  regra da mão e a luva quebrou-se , totalmente, já na segunda geração do velho Patápio Peixoto.  Absalão, rapidamente, fugiu à regra. Desde cedo apresentava uns trejeitos estranhos e, já adolescente, assumiu, totalmente sua sexualidade. Só duas pessoas não percebiam ou fingiam não perceber a sensibilidade aguçada e as roupas e adereços  extravagantes do menino : os pais.  Absalão, rápido, entendeu a barra que era, viver aquilo que a vida lhe escolheu, numa cidade pequena. Cedo, resolveu ir estudar na capital.  Desde pequeno demonstrava grande sensibilidade musical e ainda pivete começou a tocar violão intuitivamente, arte que deve ter herdado dos Brandões.
Na capital, fez-se músico de formação e não demorou a ser conhecido em todo o estado por suas habilidades nas cordas  da guitarra. Tinha uma grande legião de amigos mulheres, amigas homens  e fãs das mais variadas orientações. Pessoas que não tinham qualquer receio em viver os sabores da vida  conforme eles lhe haviam sido servidos à mesa.  Com o nome na mídia, Absalão fez-se o orgulho da mãe  que dava notícias da visibilidade do filho por onde passava. No fundo, aquilo era uma maneira, à Escolástica,  de passar na cara a vitória do rebento,  frente aos reiterados comentários maldosos e úmidos de preconceito dos vizinhos e amigos.
No fim do ano, Absalão ligou para a mãe informando que estava indo passar alguns dias com ela. E mais: ia levando a banda e um grupo de amigos. Quando o filho chegou, foi aquela alegria danada: como  pinto em beneficiadora de arroz. À medida que o dia foi passando, no entanto a genitora de Absalão não tardou, pouco a pouco, a transformar-se em novamente em Escolástica. Torceu o nariz para os amigos do filho que usavam roupas esquisitas,  mesmo sem perceber, com aquela cegueira de mãe,  que  os homens eram afeminados demais e as mulheres másculas usavam coturno. À noite, na hora de dormir, em casa pequena, uma Escolástica tradicional saltou de dentro da mãe do músico  e ordenou:
--- Ei, pessoal ! Tudo bem que vocês estão aqui e nós estamos felizes com a visita,  mas vou logo avisando: aqui não tem regras ! Não tem  modernismo , não ! Nada de safadeza! As mulheres dormem num quarto e os homens no outro !
Mal percebera Escolástica que o mundo dera muitas voltas e que a sopa, derramando-se na tigela do tempo, caíra no mel. Enquanto se agasalhavam, par com par, os homens com homens e mulheres com mulheres, uma das meninas sussurrou para um Absalão já em plena lua de mel,  no  outro lado:
--- Absalão, Absalão ! Mas tua mãe é muito avançadinha, menino ! Benza-te Deus !
J. Flávio Vieira
3 comentários:
"Não tem modernismo , não"...
Caiu a sopa no mel!
Bom demais ler os escritos do Doutor!
Abraços
Tem mãe que é cega!rs
Abraço à perambulante Socorro e ao Ulisses pela paciência quase monástica em ler um texto tão longo!
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