Venâncio vivia, com a mulher e um casal de filhos, uma vida que poderia dizer-se estável. Prestigiado, num emprego certo, passava a maior parte das horas de lazer em casa, na televisão ou lendo; os filhos, saudáveis, na escola, davam o trabalho que dão todos os filhos; a mulher, vistosa, agradável, falava sempre em viagens e pensava em vestir-se mais à moda, com mais apuro; acontecia de ir a restaurantes e/ou bares, uma vez em meio à semana, e aos sábados e domingos; apreciava música, admirava a pintura e as mulheres bonitas, entretanto, se continha. Enfim, era uma pessoa tida como equilibrada, no bairro de classe média da cidade grande do interior, e havia até quem, dele, tivesse certa inveja.
Possuía um caráter forte, obstinado, o que lhe valeu a superação dos problemas do cotidiano, com denodo, nos primeiros anos de labuta, tempo em que almejava a mão de Isaura, com quem perpetuaria a linhagem, vislumbrada como bem educada, vencedora, à qual encadeava êxitos sem fim.
Tais embates, esse viver sob controle próprio, a que era obrigado pela matemática da sobrevivência, o fatigavam. Como escapatória, dava-se a sonhar com o tornar-se endinheirado ao acertar num desses jogos de loteria, uma das raríssimas maneiras que podem tornar rico um homem honesto. Tal fantasia foi-se arraigando em seu pensamento, pois a falta de perspectiva de mudar aquilo que tinha como sendo o que lhe cabia na vida, foi-lhe incomodando mais e mais.
Não era homem afeito a religiosidade, mas possuía resquícios de medo, advindos de uma educação impingida pelas mulheres da família muito mística. Quando acontecia adentrar-se em pensamentos que o levavam a duvidar, mais fortemente, da existência de deuses, do sobrenatural, transferia o raciocínio a outro caminho. Dessa forma, foi acomodando as suas conclusões sobre esses temas, e não apelava aos santos com promessas, (seria hipocrisia), mas negociava com o Destino, como se este fosse uma entidade no jogo de compensação da existência. Assim é que, martelado pelas ideias que a propaganda consumista alimentava, propunha trocar 10 anos da vida, (parava, refletia... - Não, dez anos é muito; digamos, cinco!), - por um prêmio polpudo. Pronto, a troca seria razoável. E lá se ia, a cabeça além mar, a percorrer as paisagens de revistas e de filmes; até, quase sentia o sabor de iguarias e vinhos experimentados em famosos restaurantes; e passeios, e tantas coisas mais, a perder-se na confusão do pensamento... Mas não compraria nada (nada de obrigações),: alugaria o que bem quisesse e lhe aprouvesse; ajudaria parentes e alguns amigos... – “Seria mais provável uma recompensa do Desconhecido àquele que tivesse um certo altruísmo.” E assim se deleitava, a cada semana e, com propriedade, tornava tais divagações parte do prêmio, como para que fosse se acostumando ao mesmo.
O nosso personagem já passara dos cinqüenta anos quando, um belo dia, viu-se agraciado com uma “bolada”, dessas que, se a pessoa não fica meio lesada pelo impacto da notícia, passa a viver um “doce-fazer-nada”, para sempre, e fixa um intrigante, irritante, indefinido sorriso, meio a Mona Lisa.
A constatação do fato veio assim, por verificação própria, pelo jornal. Por mais um golpe de sorte, dessa feita não esperara que a sua secretária fizesse a conferência dos números, e, desta maneira, ninguém lograria saber do acontecido. Com a displicência de quem, em verdade, não confiasse que um dia pudesse vir a ser um desses afortunados, começou a ler as dezenas sorteadas; achou algumas delas mais ou menos familiares, como mais ou menos acontecia a cada sorteio, pois, como fazia várias apostas, sempre apareciam pares coincidentes. Melhor seria pegar dos talões de apostas e conferir: Zero-três, ‘tá; onze, errado; dezesseis, bom; dezenove, também; o restante, desilusão. Segunda aposta, nada feito; terceira, um só acerto, das seis dezenas; mas ainda havia dois cartões; seu coração começou a bater forte ao chegar à quarta combinação correta... Reviu as quatro primeiras e foi à quinta, também, confirmada; esfriou ao ver que ratara a sexta; - “Mas, uma quina já seria um consolo”. Um misto de contentamento e frustração já começara a lhe tomar conta, quando, então, enxergou o “milagre”, ali, escrito: a sétima dezena completara as seis necessárias. Calou-se, como se calado não estivesse, olhou para os lados, retornou, inúmeras vezes, a confirmar os acertos, e sentiu um frêmito inexplicável: “- Besteira!”. Depois, mais nada, apenas um torvelinho de pensamentos desconexos lhe chegava.
Ninguém deveria tomar conhecimento,..., Assalto…; pedidos de empréstimo; inveja; interesses. Como ajudar, no anonimato? Vivia tudo ao mesmo tempo, sem ainda ter tomado posse do seu quinhão, sem esperar a chegada do dia seguinte; era sair do banco, fazer as contas daquilo que auferiria a cada mês, ir ao trabalho explicar como gostaria de retirar-se, aos poucos, daquela rotina, e enveredar por outras atividades, e etc., etc., etc. Tudo em que pensava dava certo na sua conclusão.
No dia seguinte, pouco dormido, tomou um caminho distinto daquele que, normalmente, seguiria, a fim de chegar ao seu tesouro; como um desviado da lei, procurou não ser visto por não olhar para ninguém, como se, assim procedendo, as pessoas não pudessem enxergá-lo ao passar, ao entrar naquele estabelecimento. E foi ter com o gerente, seu conhecido, com quem não chegou nem mesmo a trocar cumprimentos, concluídas as formalidades do crédito e investimento na conta. Foi tomado pelo desfile de toda a sua existência, até a recente troca do dinheiro pela redução dos anos de vida, tudo tão rápido quanto uma centelha. Sentiu as vozes se esvaindo, os sons a se confundirem e entrou no céu das fantasias com a certeza de que era o que lhe restara usufruir naqueles instantes derradeiros.
José Arraes de Alencar Ximenes, empresário, Administrador de empresas, cratense radicado em Recife. Na foto, posa ao lados das tias Almina e Anilda Arraes.
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