por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



segunda-feira, 16 de maio de 2011

Entre moscas - Everardo Norões


Retábulo de Jerônimo Bosch


Se a vida (não) nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras de nossos sonhos, desenhos e cores/mistas/esculpindo o nosso esquecimento sob a parada exterioridade dos muros(Fernando Pessoa)

A mosca cola-se ao vidro da janela. Ela é o alvo (a ‘mosca’) de meu olho, o objeto para onde converge minha atenção, embora além do vidro se estenda o verde da mata e, detrás dele, a casa no alto e outros elementos da paisagem: fios, cercas, monturos. E nos monturos, a lâmina das circunstâncias que corta nossas vidas: favela, sem esgoto ou água encanada, barulho de martelo a pregar algum segredo ou o homenzinho apregoando macaxeira.
Mosca: ao mesmo tempo alvo e inseto (‘insetalvo’, ‘alvinseto’?) da espécie dos esquizóforos, assim denominados por terem um sulco frontal a dividir a cabeça em dois hemisférios. Ela mexe-se, inquieta, alvo móvel a dar voltas em torno de si mesma. Fosse gente, seria considerada alguém que dissocia ação e pensamento, no limiar da esquizofrenia. Mas age assim certamente por ter olhos múltiplos, omatídios, oitocentos grãos translúcidos, esferas cristalinas de alta definição, como um aparelho de televisão LCD. Levam luz ao cérebro minúsculo e agora estão encandeados pela superfície brilhante do vidro que a detém no interior do quarto onde procuro descobrir sua estratégia de livramento da prisão na qual a mantenho.
Ela, a mosca, terá uma duração de, no máximo, vinte e um dias, seu ciclo vital. Terminado o movimento dessa peregrinação (que também pode ser subentendido como realidade subjetiva), ficarei sozinho, sem ter com quem partilhar o fastio, nem mesmo a restrita visão das gotas de chuva sobre as folhas das árvores próximas ou o reflexo do sol a esmorecer-se sobre o ocre dos telhados.
Quando penso nessas sensações, não as considero mera percepção ótica de um mundo que nos estrangula, a mim e à mosca. É como se estivéssemos dentro de uma bolha invisível, dentro da qual contenho meu próprio espaço-tempo.
Quanto à mosca, faço de tudo para não assustá-la, embora às vezes a perca de vista. Procuro segui-la atentamente e durante a perseguição me vem sempre à cabeça o verso do poeta espanhol Antonio Machado:

“(...) vosotras, moscas vulgares/me evocáis todas las cosas”.

Penso, então, na mosca que pousava no olho do primeiro morto que vi. O cadáver, estendido no caixão, mãos postas, rosto escondido com um lenço que de vez em quando era erguido por um curioso ou um parente próximo. Quando o morto era descoberto, a mosca voava, voava, e regressava, com insistência quase raivosa aos olhos do defunto. “Tão moço!”, repetiam todos a mesma frase ao afugentarem a mosca naquele seu voo que se limitava ao território do tamanho de uma camisa de cambraia de linho branca.
Ao “evocarem todas as coisas”, lembro também a que me perseguiu na travessia de um trecho de deserto. Havia sido prevenido de que o instinto de sobrevivência levaria a mosca a se grudar em algum de nós e a seguir-nos até o fim da viagem. Instintivamente, ela sabia que, naquelas circunstâncias, abandonar o hospedeiro significaria a morte. Descuidei-me e tornei-me seu alvo. Feri-me, de leve, de tanto tentar livrar-me do assédio e acabei por guardar uma pequena mancha vermelha, que ainda trago no rosto.
Encontrei-a de novo, a mosca, a minha mosca. Começou a saltitar sobre o livro aberto ao lado, em cima de um pedaço de frase: “to drive home the finality of death”.
Caminha com passadas microscópicas, ultrapassa o trecho “by the monotonous buzzing of the flies?” e depois de roçar meu braço esquerdo aterrissa finalmente na pequena porção de comida, de cerca de 3 gramas, que depositei sobre a folha de papel branco, tamanho A4. Assim, estará abastecida durante a rápida trajetória sobre o nosso reino particular de cinco metros quadrados: mesa, computador, pequena estante com cerca de vinte livros e metade de uma resma de papel reciclável.
Sobre o fundo branco acompanho seus pequenos gestos nervosos, seus rodopios, riscos no papel. Mexe as patas, esfrega no pouco de comida o que se poderia chamar de focinho, mas cujo termo correto é ‘probóscide’. Não pode ingerir sólidos, por isso deposita uma mistura de saliva e suco gástrico, um ínfimo vômito, na queles minúsculos resíduos. Uma digestão ‘externa’, que não consigo observar, nem mesmo com óculos. Se conseguisse examinar melhor diria o quanto de asco poderia causar-me. Mas por ser um ato tão microscópico, como tudo o que não se vê, não me dá nojo. Imagino que assim deve pensar Deus – se é que Ele existe – sobre todos nós humanos, pequenos insetos nervosos a se mexerem, sem objetivo nenhum no nosso pequeno bólido perdido no universo.
Deixo-a mais calma, a mosca, a digerir sua refeição de final de tarde. Levanto da cadeira, onde fico o dia quase todo a ler e a tentar entender os teoremas da incompletude de Gödel. Olho-a como para me despedir e penso de novo:

“(...) vosotras, moscas vulgares/me evocáis todas las cosas”.

Nenhum poema sobre moscas igual a esse de Antonio Machado. Nada de “mosca azul, asas de ouro e granada” daqueles versos do outro Machado, que certamente detestava negros, complexado, submetido a ataques epilépticos, orgulhoso de sua farda de academia, dólmã de antigas turquias. Quanto a mim, prefiro a mosca de verdade: preta, sem metáforas. A que reina sobre nossa podridão, faz brilhar a ferida. Como a mosca-varejeira: pequenos ovos- -luz, larvas esbranquiçadas sobre a úlcera na perna do cego da feira, que nos obrigava a correr para fugir de sua companhia.
Ei-la sobre o papel imaculado: simples ponto escuro sobre o branco, que tudo pode significar: sinal enigmático do texto, buraco negro das origens, fuligem final dos grandes incêndios, caractere original de alguma tradução de Camilo Pessanha. Aquele de barba toda moscas, tuberculose e concubinas, no sujo chão da China.
Desligo o ar-condicionado. Levanto da cadeira, com comichões na perna direita. Fecho a porta com cuidado. Giro a chave, para que ela não fuja durante a noite e eu não perca sua companhia, pelo menos durante os presumíveis 21 dias que ainda lhe restam.
E de repente escuto, numa espécie de murmúrio.
Ligo a grande mosca, a que não se mexe, não volteia no ar. A que mede trinta e seis polegadas, milhares de grãos translúcidos, esferas cristalinas de alta definição, que levam a escuridão ao nosso cérebro minúsculo. E agora encandeiam a noite, na qual, sozinho, confundo- -me com ela...

SOBRE O AUTOR
Everardo Norões é poeta, autor de A rua do Padre Inglês. Esse texto faz parte do seu primeiro livro de contos, ainda sem título.

In Suplemento Cultural de Pernambuco - Março de 2011
http://www.suplementopernambuco.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=317:entre-moscas&catid=10:ineditos&Itemid=4

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