por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quarta-feira, 13 de abril de 2011

O LAGAR DO MEU AVÔ- Por Barbosa Tavares





Lá estão. Os resquícios do que fora outrora um lagar. A dorna desmantelada, arcos enferrujados num canto distendidos, a trave de carvalho encastoada na parede de granito e a enorme pedra ovular que fazia gemer o bagaço , espremendo-lhe todas as gotículas do néctar de Baco.

As teias de aranha enoveladas nas frinchas das telhas, as traves enegrecidas e carcomidas, testemunhavam, inequívocas, a voracidade aniquilante dos anos transcorridos sobre duas gerações.

O tempo na sua desolação , tragou parte do legado vinícola dos avoengos. O lagar onde noutros tempos se celebrara o contentamento do mosto a fermentar, a coroação da vindi- ma, a alegria de haver vinho novo, revejo-o na constatação inequívoca da decrepitude impediosamente lavrada nos utensílios do lagar—as telhas partidas, as traves carcomidas, os novelos urdidos pelas teias de aranha, reacendem a efemeridade de nossos dias.

Revisito os homens de pés espalmados e pedregosos, as luzidias uvas negras esmagadas num estalido seco, o movimento cadenciado das pernas--músculos retesados--as calças arregaçadas ate à virilha.

Finda a tarefa, o vermelho-sangue do mosto, escorrido pelas pernas , as graínhas e pele das uvas, empastavam-se na cabeladura das pernas e, os pisadores assemelhavam-se a lutadores acabados de sair da mais sangrenta peleja.

Na parede de granito havia uma candeia mortiça, assente sobre um pedaço de chapa encastoada numa frincha, pela qual trepava um caprichoso fio de fumo que se impregnava nos refegos da pedra e sugeria a ideia de arte espontânea.

Naquela penumbra, com a noite serenada de estrelas e sinfonia dos grilos, ressoava a alegria dos pisa-uvas, enquanto contavam historietas, com gracejos e a alegria rufava com a sonoridade de estrepitosas gargalhadas.

No final, aguardava-os um bacia de esmalte, esboicelada, o sabonete da veia azul-- era assim que minha avó lhe chamava-- um jarra e a mais macia das toalhas, para enxugar pés doridos de tanto esmagar uvas e seus cadraços

Para cumular de glória campestre aquela azáfama vinícola, celebrava-se uma fraterna bacalhoada, tragada à luz da candeia, com uma travessa comum e a malga escorria fios de vinho pelos bordos a circular de boca em boca, que se limpava com as costas das mãos rugosas em terra talhadas.

Na lareira, estralejavam resinosos ramos de pinheiro e casca de eucalipto.O meu avô arrancava um minúsculo graveto de lume e atiçava o pavio duma centenária candeia negra que nem tição , que tresandava petróleo e, seria hoje, uma honrosa relíquia de museu.

Desciamos umas escadas de pedra, toscas , pré-históricas. Com uma mão em forma de concha sobre a candeia , eu apaziguava as sopradelas do vento que faziam da chama um bailado.

O meu avó, trôpego de lentidão , eu , com a malga encochada nas mãos , seguia-lhe os passos. Com uma sovela, desventrava um pedação de estopa do ventre de uma ancestral e bojuda pipa, e o vinho jorrava em arco , cachoando na malga.

Ainda ouço as invectivas de meu avô:" rapazinho, essa luz pra riba, alumia mais pra baixo, pró outro lado, assim". Eu, perante aquelas barbas grisalhas de patriaca, limitava-me respeitosamente a obedecer e sustia, como convinha ,a minha infantil crispação a remoer-me em silêncio vertido no interior da alma: "o diabo do velho é mesmo chatarrâo"

Entravamos na loja, que é para as bandas da serra o local de arrecadação do vinho e da salgadeira. Assomava as narinas a frescura húmida do térreo chão, o bafio da salmoura , o aroma das cebolas em madeixas pendentes de toscas e denegridas traves de carvalho e as incontáveis teias de aranha que repousavam em novelos suspensos, na quietude ba-fienta daquele penumbroso frescor.

Havia uma bexiga de porco defumada, amarelecida, torrada pelo tempo, pendente duma trave. Nunca soubera da sua utilidade, enquanto criança. Há tempos dei comigo ensarilhado a cogitar, afinal, para que serviria a tal bexiga? Num relance, imaginei que seria para esquentar a água com que se apaziguavam as dores de ventre e outras mazelas da vida aldeão arredada do convívio dos alópatas.

Que não restem dúvidas, tudo se esvanece no tempo, até alguns nacos das miticas recordações da infância, que julgavamos imorredoiros, fenecem nas olvidáveis teias , urdidas, na descompaixão do tempo inclemente.

E logo, me assomou à mente, aquela tirada, arguta e cruel do filósofo ,lida não sei quando e onde, de um rigor imperecível: "poderás perdoar tudo o que quiseres, mas o tempo não perdoa a ninguém"



Brampton, Ont. Canada

Novembro de 1998



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