Filho de fazendeiro e pecuarista, nasci e me criei no Sitio São José, numa propriedade rural pertencente ao meu pai. Contudo, nem de longe eu me afinava com algumas atividades correntes naquele ambiente. Confesso que fui mesmo um menino avesso às práticas da agricultura e da pecuária. Lembro-me muito bem de quando caiam as primeiras chuvas do mês de janeiro, marcando o início da quadra invernosa em nossa região. Acordava assustado com os trovões, raios e relâmpagos que clareavam o meu quarto pelas brechas das telhas, mas, apesar do medo, envolvido em meu pijama de flanela, ficava maravilhado em escutar a cantiga da chuva no telhado da minha casa. Porém, sabia que, ao amanhecer do dia, logo estaria escalado para compor a tropa que iria fazer o plantio de milho e de feijão no pasto do engenho. Era uma plantação apenas para consumo da família. O meu pai sempre plantava esta área para ter o desfrute do milho verde cozido ou assado, da canjica sem igual que só a minha mãe sabia fazer, e também daquele feijão verde cozido com jerimum caboclo. Tudo fresco e colhido no dia.
Em meio aos muitos trabalhadores, iam também os seus filhos junto com ele. E eu, criança, não entendia porque o meu pai fazia isto com a gente. Queria apenas ficar brincando. Se ele tinha tantos moradores e podia contratá-los, por que me levar para o roçado? Reclamava dessa prática e resmungava o tempo todo. Mas, não adiantava reclamar. Tinha mesmo que trabalhar. Era uma espécie de plantio feito de improviso, para não perder o terreno molhado e por isso, dizia-se que era uma “planta no espelho”. Depois que o legume brotava, é que era feita a limpeza final do terreno.
Nesse plantio cabia sempre a mim a tarefa de semear o milho, seguindo a pegada dos outros trabalhadores que iam à minha frente abrindo as covas na terra molhada. Dada à presença abundante de espinhos, carrapichos, maliça e ainda daquela formiga vermelha, o consumo de sementes crescia a cada carreira que eu semeava. Revoltado com o que estava obrigado a fazer, eu sempre enchia a mão ao fazer a semeadura, ao invés de lançar apenas três ou quatro grãos em cada cova. O resultado desse trabalho sujo e irresponsável só seria visto por meu pai três dias após o plantio, quando ele voltava para vistoriar o roçado e avaliar a necessidade ou não de algum replantio. Eram inconfundíveis as marcas deixadas por mim, tão visíveis que eram as “carreiras” onde o milho brotava amontoado, formando grandes touceiras que já nasciam condenadas ao atrofiamento. Em cada cova, fazia-se necessário a retirada do excedente.
E quando chegava o tempo da colheita, novamente eu era escalado para ir ao roçada buscar milho e feijão verde. E eu, mais uma vez, aprontava as minhas. Só trazia o feijão na sua forma mais tenra, chamada de “canivete“, e as espigas de milho ainda embonecando, alegando que não conseguia identificar o que já estava no ponto certo para ser colhido. Nem assim me davam trégua e eu continuava indo à roça para colher o que não queria, enfrentando o orvalho, as formigas, o carrapicho e ainda a maliça a cortar as minhas pernas. Para me livrar deste grande tormento, me veio a seguinte idéia: antes de chegar à roça, eu passava pela casa de um antigo morador, Seu Expedito, e em lágrimas, relatava para ele o meu drama. Ele, compadecido desta criança em desespero, dizia para que eu ficasse na sua casa brincado com os seus filhos enquanto ele faria a apanha do feijão verde por mim. Essa tática durou um bom tempo, até que meu pai certa vez o flagrou fazendo o trabalho que seria meu. Depois de advertido, não pode mais colaborar comigo nesta função.
Outra atividade que eu abominava, era o pastoreio do gado. No inverno, a chuva intensa provocava muita lama no curral e o gado, inconformado, berrava sem parar, como que pedindo para sair daquele ambiente insalubre. E esse berreiro interminável era tudo o que eu não queria. Além da lama, tinha também a mutuca que muito incomodava o rebanho. Coincidentemente, logo após as primeiras chuvas brotava uma vegetação rasteira que se chamava de babugem, muito apreciada pelo gado. Nesse ambiente, tudo conspirava contra mim. O meu pai queria tirar o gado desse sacrifício e contava com o entusiasmo do meu irmão Geraldo Sérgio, que desde menino adorava lidar com o gado. E quando eu previa que estava prestes a ser chamado para esta tarefa, inventava que estava estudando ou me prendia à mesa numa merenda sem fim, regada a tapioca, cuscuz, pão de côco e café. Enquanto lanchava, pela janela da sala eu via quando o gado saía do curral e corria beirando a linha do trem. O meu irmão gritava e me chamava aflito, mas eu fingia nada entender. Só saía da mesa quando era expulso por meu pai para ajudar o meu irmão. E quando eu me distanciava o bastante da minha casa, a ponto de não mais ser visto, eu me sentava no trilho do trem e de lá ficava atirando pedras nas vacas mais afoitas e que queriam se entender mais ainda ao longo da estrada de ferro. Eu queria que o rebanho ficasse confinado para poupar meu trabalho e, para tanto, atirava pedras em seus chifres, deixando-as furiosas.
Hoje, depois de tudo passado, vejo o quanto me valeram estas lições de vida dadas por meu pai. Embora reclamasse muito quando criança, reconheço agora que esse aprendizado forçado preparou-me para o profissional que hoje sou e deu-me a exata noção de que somente com o trabalho o homem alcança a sua grandeza.
Texto dedicado ao meu pai Geraldo de Melo.
Marcos Barreto de Melo
4 comentários:
Beleza de texto, Marcos.
Menino, tu era travesso, hein?
E isso foi muito bom.
Olá Stela,
Sinto-me prestigiado com o seu comentário. Obrigado pela presença.
Abraço e uma boa páscoa pra você.
Marcos
Marços,
Esta sua crônica é uma narração cinematográfica, as palavras aparecem como imagens na minha mente.
Parabéns pelo excelente texto.
Abraços
Aloísio
Aloísio,
Obrigado por prestigiar esse texto e pelas palavras de incentivo.
Abraço,
Marcos
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