por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 17 de maio de 2013

A tortuosa estrada do sonho



                                                                                    
                      Ali estava bem na sua frente e era um deslumbramento. Parara ofegante e atônito, como um menino que balbucia as primeiras palavras de amor para a namorada. Saíra com a inglória missão de comprar um presente para o aniversário do filho, esta difícil e impalpável arte de calçar  a matéria no sonho alheio. De repente, diante dos seus olhos, como se pronunciasse o abracadabra ou o abre-te-sésamo, aparece o objeto de todos os desejos da sua já distante  infância.                                                                                                                             
                                    Fora pirralho pobre e desde cedo precisara aprender a inventar os seus próprios brinquedos. A duras penas , aprendera a fazer o pião com um tronco de goiabeira e um prego; o “triângulo”, mais simples , o precedera, quando entortou a extremidade de um arame e afiou a outra ponta numa pedra de amolar facas. Depois viera o caminhão, doce enlevo da sua meninice, que fabricara desfazendo uma velha caixa de madeira e dela construiria todos os módulos: a boléia, a carroceria, as rodas ( a mais difícil tarefa) e até os amortecedores --  feitos das aspas metálicas que recobriam a caixa e que davam ao carrinho um discreto molejo, tão importante para as manobras mais radicais. As bolas de gude   (  de aço ,as preferidas) eram conseguidas dos mecânicos da redondeza, que as tiravam de rolamentos “gripados”. Depois vieram os carrinhos de rolimã , os patinetes construídos com tábuas e rolamentos, que eram o terror do sono de todos os vizinhos Fez-se clone  de Ícaro ,também , montando   “pipas” com papel celofane, pedaços de madeira e “grude de goma”. Os “papagaios”, ao serem empinados, como que alçavam aos céus o dourado enleio da sua  infância ( enleio que um dia se perdeu no espaço,  ao ser cortado pelo brusco cerol da adolescência).                                                                                                                   .                                                                                                    
                                          Uma vez , pisando na sombra do pai, tinha tido um encantamento igual ao de hoje : diante de si um ônibus feito artesanalmente, de quase meio metro, com inúmeras cadeiras no seu interior , as laterais fabricadas de lata e pintadas, onde se lia, em letras transversais: “Viação Cometa”. Lembra, como se fora ontem,  atanazara tanto o pai para comprar aquela maravilha,  que terminou por ganhar o mais comum presente do seu tempo: uma surra monumental.
                                  Hoje, no entanto,  se sentia o mais feliz homem do mundo: podia dar ao filho o mais almejado presente da sua vida de guri. Comprou-o, trêmulo, como se tivesse voltado  trinta anos .  Cerrou os olhos um pouco, enquanto o vendedor lhe trazia o troco, e se viu apenas de calção listrado, com barbante na mão,  à guisa de volante,  e dirigindo cuidadosamente aquele ônibus que por tantos e tantos anos foi o cometa de todos os seus desejos. O tilintar do troco no balcão o fez viajar , num átimo, três décadas de volta. Tomou do embrulho valioso e partiu célere para casa, na expectativa de ver ,nos olhos do filho,  a felicidade que poderia ter brilhado nas suas próprias retinas tantos anos atrás...
                              Mal abre a porta, berra, ofegante :
                   ---Filho, olha o presente de aniversário que eu trouxe pra você!
                              O menino corre e rasga o invólucro, vorazmente, sem nenhum critério artístico. De repente emerge do papel picotado , o ônibus reluzente. O filho , porém, não reluz como o ônibus,  o olha sem entusiasmo e pergunta, sem graça:
                   ---- Pai, o que é que ele faz, hein? Tem controle remoto, anda sozinho?
                             O pai, triste,surpreso,  ainda pensou em explicar que aquele carrinho fazia tudo: andava sozinho, corria, subia ladeiras e rampas, até voava e tinha controle remoto sim: A imaginação. Mas já não adiantava, o guri, hipnotizado,   agora fixava seu pensamento  apenas no videogame e o sonho de infância do pai estava ali jogado no chão em total desamparo --- um ônibus que capotara , perdera em algum lugar a sua força lúdica,  e era agora um  veículo  enferrujado,  obsoleto , sem rumo claro e sem destino previsível.

J. Flávio Vieira

segunda-feira, 13 de maio de 2013

VIOLETA ARRAES HOMENAGEADA NO RIO DE JANEIRO

Em reconhecimento à luta que Violeta Arraes, em vida, desenvolveu em prol dos Direitos Humanos, e pelo apoio dado na Europa a perseguidos pelo regime instalado no Brasil em 1964, o Departamento de Mulheres do PSB do Estado do Rio de Janeiro criou a Medalha Violeta Arraes a ser concedida a personalidades que tenham se destacado no mesmo campo das batalhas por ela travadas. A primeira agraciada será a Deputada eleita por São Paulo, Luiza Erundina. A cerimônia de entrega será no próximo dia 27.05.13

Água no Leite - José do Vale Pinheiro Feitosa


A corrupção é uma marca tão essencial ao capitalismo que não pode ser codificada em normas morais e éticas. A natureza em si do sistema econômico capitalista é extrair vantagens que podem ir ao limite da destruição do outro. Talvez a única coisa que ameace ao sistema é a negação da propriedade privada de quem acumulou. Por outro lado quem nada tem, pode até sentir-se ameaçado numa discussão de cinco reais, uma vez que existe um sentimento contínuo de perigo sobrenadando a existência dos pobres no sistema capitalista.

Os movimentos fascistas, os braços nervosos dos varões de Plutarco contra a corrupção, o púlpito do demônio alheio jogam sempre com este perigo inerente aos pobres que vivem num sistema cuja natureza é tirar deles e concentrar no “mérito” de alguém. Quando o sistema Globo inventou Collor de Mello jogou com este sentimento generalizado no povo brasileiro: o Caçador de Marajás. A rigor os “donos-do-poder” faziam uma jogada perigosa: levantavam a lebre da raiva popular contra aqueles que tudo lhes tira dirigindo tudo ao Governo e aos políticos, mas num lapso de marketing a consciência poderia brotar ali. Os verdadeiros acumuladores de riquezas (num mundo finito quem acumula retira de alguém) são verdadeiramente outros.

São os construtores. Os patrões das terras. Os industriais e seu exército de executivos. Os comerciantes e atravessadores. Os fornecedores e prestadores do Estado. Os especuladores na Bolsa. Os banqueiros com os escolhidos do rentismo e vai neste tipo de personagens e suas narrativas de vida.

Um exemplo de inerência corruptora temos nos 15 milhões de litros de água adicionado ao leite no Rio Grande do Sul. A fórmula era simples: 10 gramas de ureia diluída num litro de água e adicionada em nove litros de leite. A ureia, aliás, é uma das primeiras substâncias orgânicas a ser sintetizada em laboratório e foi a que derrubou a teoria de Pasteur de que as substâncias orgânicas só poderiam ser sintetizadas num organismo vivo. Como vimos existem muitos vivos mais “vivos” que o comum dos vivos.

Tem-se um padrão de qualidade para os alimentos. Ao fazer a adição corrupta os fraudadores estavam na mesma lógica dos juros bancários, do preço das mercadorias, dos salários dos trabalhadores e por aí vai. Acontece que tal adição foi levantada por dentro das instituições do sistema e nesse sentido o argumento da inerência estaria prejudicado. A explicação se encontra no fato de que o próprio processo de acumulação por ser autofágico precisa ser freado em seu poder destruidor a ponto de perder a natureza sistêmica e se tornar uma mera destruição aleatória.

Aumentar a água do feijão para encher o prato da família faminta é uma solução diferente de aumentar a água no leite para se obter lucro além daquele que já se encontra acordado. A água adicionada ao leite é igual às escolhas da alimentação escolar feitas por funcionários municipais (incluindo vereadores, prefeitos e secretários) para atender à negociação com fornecedores que financiam a vida privada e política de alguns.  

sábado, 11 de maio de 2013

Quando algo que é esconde o que não é - José do Vale Pinheiro Feitosa


Os cabelos brancos que vendem.

A americana Cindy Joseph de 60 anos é uma requisitada modelo para campanhas publicitárias no seu país. Seus cabelos não pintados, completamente brancos, vendem a imagem para o país que envelheceu demograficamente.  Esta é a explicação mais importante?

Não. O fenômeno é a crise americana. Os mais jovens não têm oportunidade e os mais velhos que ainda gozam de alguma grana de sua poupança feita ao longo da vida são os consumidores com grana no bolso. Então o público alvo com dinheiro se compõe dos mais idosos e tome cabelos brancos nas campanhas para vender bugigangas ao ócio de aposentados.

 O que parece ter base na realidade nem sempre é a principal explicação.  

Por exemplo, que o sal é um importante fator para o aumento da pressão arterial. Por isso a população afrodescendente no Brasil teria maior tendência à hipertensão pela sujeição, geração após geração, a uma dieta rica é sódio através das carnes salgadas.

Mas a questão é outra. Na travessia entre a África e as Américas a desidratação e a fome matavam por vezes mais da metade dos prisioneiros que seriam vendidos nos mercados de escravo. Eram muitos jovens os prisioneiros e não suportavam as condições do transporte de dias através do Atlântico. Quem sobrevivia mais? Quem eram os mais resistentes?

Os jovens que eram naturalmente mais poupadores de sódio. Estes conseguiam reter mais sódio e mais líquidos e resistir à morte. Esta seleção tem enorme peso para explicar a razão de ao serem submetidos a dietas altas em sódio com as carnes salgadas de terem maior tendência hipertensiva: eles não necessitam tanto sódio. São poupadores de sódio.

São mais probos aqueles que correm as ruas a denunciarem a corrupção? São mais democratas aqueles que levam seu tempo a condenar os regimes socialistas? São mais religiosos aqueles ferozes guardiãs dos poderes hierárquicos do templo? O capitalismo livre e solto, sem concorrente ideológico, mostrou-se o mais elevado padrão político do progresso humano?

O farisaísmo é a fantasia preferida neste vasto baile de mascarados. O mais destacado totalitário renega a alteridade na primeira fila das pedradas nos “pecadores” da ordem. O cetro de sua eminência é lustrado todos os dias pelas mãos suaves de unhas ferinas em nome da fé. Agora a palavra é a do mercado livre, amplo e solto em sua gloriosa locução aos desempregados do mundo.  

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Enxugando gelo



Vocês já devem ter percebido a grande polêmica que invade as redes sociais. A Frente Nacional de Prefeitos,  desde o início do ano, vem pressionando o Governo  com o fito de contratar médicos estrangeiros para atender ao SUS, principalmente nos grotões mais inóspitos do país. Existe, pois, uma mobilização no sentido de contratar seis mil médicos de Cuba e Portugal,, principalmente, na busca de solucionar essa demanda historicamente consolidada.  Diversas Entidades Médicas, capitaneadas pelo Conselho Federal de Medicina, se puseram , imediatamente, por razões técnicas, contrárias à iniciativa. A Direitona brasileira, por sua vez, range os dentes e espuma,  sempre que soa o nome Cuba nos ares. Nem lhes interessa muito discutir a questão, pensa , imediatamente, que Fidel está vindo com seus guerrilheiros invadir o país  e comer criancinhas.  Há razões plausíveis do lado das entidades médicas, dos prefeitos e do Governo Federal para adotarem uma ou outra postura. Interessa-nos dissecar anatomicamente o problema e tentar encontrar caminhos em meio ao tiroteio de lado a lado. Até mesmo porque , exatamente no meio do fogo cruzado, encontra-se a população mais necessitada, sempre baleada,ferida  mas, mesmo assim,  usada como massa de manobra nessas intrigas e arranca-rabos dos cachorros maiores.

            O Brasil tem hoje 400.000 médicos , uma proporção de exatamente dois esculápios para cada 1000 habitantes: o dobro da necessidade mínima preconizada pela OMS.  A grosso modo esta estatística demonstra que temos profissionais suficientes no país para atender a nossa população. Existem, no entanto, filigranas que precisam ser avaliadas. Possuímos, por outro lado, um grande problema de distribuição. Os médicos no Brasil, na sua maioria, residem nos  grandes Centros , nas Capitais, no litoral.  72% desses estão fincados nas Regiões Sul e Sudeste. Em São Paulo existe um médico para cada 239 habitantes, em Roraima um  para cada 10.306 almas. No Amazonas, um estado de enorme dimensão territorial,  88% dos médicos residem em Manaus. O acesso aos cuidados médicos depende assim, intrinsecamente, da nossa geografia. Se você mora no interior do Brasil e nas regiões Nordeste e Norte certamente se verá em grandes dificuldades quando precisar de consultas, exames ou internamentos. Vamos, amigos, para ter uma visão mais abrangente, tentar entender a perspectiva de cada uma das partes envolvidas .

            Os governantes dos estados com menor oferta de médicos se vêem politicamente cobrados pela população, no sentido de ampliar a oferta de profissionais. Acossados pela desassistência e sua inevitável conseqüência nas urnas, pressionam as esferas superiores no sentido de minorar o problema. Eles sabem, perfeitamente, que não é apenas o salário ofertado o imã suficiente para atrair profissionais: a questão é bem mais complexa. Compreendem que o grosso do atendimento está sendo feito por pajés, meizinheiros, “cientistas”, balconistas de farmácia, rezadores. Todos sem nenhum diploma que pudesse ser revalidado. Depreendem daí , rapidamente, que qualquer médico, com qualquer nível de qualificação, é melhor que médico nenhum.

            As Entidades Médicas, que têm a função precípua de regulamentar a atividade no país,  não se sentem capazes de validar diplomas estrangeiros , sem saber , realmente, como o profissional foi formado e qual seu nível de qualificação. Mais cedo ou mais tarde, fechando os olhos para isso, percebem que os Conselhos se verão atulhados de processos éticos e penais , o que termina por colocar ( bons e maus profissionais)    na mesma corda bamba, como farinha de um mesmo angu indigesto.

            Já o  Governo Federal, de há muito , tem se incomodado com essa realidade da má distribuição de médicos no país. Desde a famigerada Revolução de 64, vem fazendo proliferar as Escolas Médicas no Brasil. De 2000 a 2010 as Faculdades de Medicina dobraram por aqui. Na sua maior parte, privadas. Hoje temos quase duzentas. Ingenuamente,  imaginavam nossos governantes que inflacionando o mercado de profissionais, a competição aumentaria e a distribuição se faria imperiosa. Não foi isso que aconteceu. Até os médicos estrangeiros em atividade por aqui estão mais concentrados no Sul e Sudeste. Médicos aqui se formam para tratar quem pode pagar. Formam-se especialistas e não generalistas: apenas 0,5 % dos médicos brasileiros são especialistas em Medicina Preventiva e Social. E mais : preparam-nos  para tratar e não para prevenir.  Ademais, o governo interroga as Entidades Médicas : Por que exigir qualificação dos estrangeiros apenas ?  O PSF no Brasil se compõe, basicamente, de  médicos  recém formados e aposentados. Passariam no teste do Conselho Federal ?  é importante lembrar que  o Governo traz junto o apoio da Organização Pan-Americana de Saúde ( OPAS) e há uma verdade indiscutível: no que tange à Medicina Preventiva , os médicos cubanos são extremamente bem capacitados.

                        Os médicos brasileiros, por sua vez,  isoladamente ou em grupo, protestam contra a contratação dos estrangeiros. Defendem uma certa reserva de mercado.  Poucos, no entanto, por qualquer preço que lhes fosse oferecido, com a maior estabilidade possível, deixariam o conforto da beira mar e dos recursos mais modernos que a Medicina oferece, para se enfurnarem, como bandeirantes, naquilo que chamam de fim de mundo. As novas gerações de esculápios são muito mais cartesianas que hipocráticas.

                        O mais importante, no entanto, ao meu ver é o entendimento que qualquer solução que se tome, com ou sem estrangeiros, é perfeitamente emergencial e temporária. Os médicos estrangeiros , se vierem, não ficarão definitivamente e, mesmo se receberem visto permanente, que garantia teremos que permanecerão nos grotões do Brasil ? A grande pergunta que permanece no ar é : como fixar nossos esculápios em todo o Brasil, com uma distribuição de profissionais menos perversa ? Como diminuir a volatilidade nos PSF ? Se é o mercado a grande fábrica das vocações médicas, é para ele que nos devemos voltar. Não é tão-somente o salário que atrai o médico. A coisa é bem mais complexa e passa por estabilidade no emprego, possibilidade de ascensão  funcional, qualidade de vida , horizontes amplos de exercício de  uma Medicina moderna, com formação continuada. Precisaríamos, assim, ter uma carreira federal , de preferência com dedicação exclusiva, regulamentada trabalhisticamente, com começo, meio e fim claros e, mais, salário muito atraente para oferecer aos nossos médicos do Programa Saúde da Família. Teríamos a possibilidade de revitalizar a especialidade de Médico de Família e  de Medicina Preventiva e Social. Já tivemos algo parecido na história com a Fundação SESP. O grande gargalo parece ser, mais uma vez, o subfinanciamento da Saúde. Só no Ceará necessitaríamos de algo em torno de 2300 profissionais.

                        O SUS, com todas as críticas que se lhe faça, conseguiu, em pouco mais de vinte anos, mudar radicalmente para melhor nossos Indicadores de Saúde. Doenças de controle Vacinal desapareceram, a Mortalidade Infantil teve um decréscimo vultoso, a Esperança de Vida melhorou de forma impressionante. Já pensou se houvesse orçamento suficiente ? Continuamos, em algumas questões como a da distribuição, a malhar em ferro frio: não tocamos nas raízes mais profundas dos nossos problemas. Com ou sem estrangeiros,   ainda permanecemos enxugando o gelo na esperança inglória de um dia secá-lo, agora com toalha importada.

J. Flávio Vieira

quarta-feira, 8 de maio de 2013


PEC das Domésticas: Complemento da Lei Áurea? 

por José Almino Pinheiro


Há 126 anos foi assinada, pela princesa Isabel, a Lei Áurea, episódio que aprendemos desde cedo nos bancos escolares. Mas não nos ensinaram o que é preconceito, racismo e coisas tais. Essa lição omitida nas escolas e em casa, a duras penas fomos aprender nas ruas. Ninguém falava no assunto. Era e, ainda, é tabu. No catecismo nos ensinavam que éramos iguais, todos filhos de Deus, descendentes de Adão e Eva; nas leis dos homens também está escrito que somos iguais. Na escola da rua o aprendizado contradizia tudo isso. Havia necessitados, pobres em geral abandonados à sua própria sorte. Que igualdade era essa? Discriminação geral nos empregos, nos salários e nas escolas públicas onde estudavam apenas alguns privilegiados; pobres quando atendidos nas casas de saúde eram indigentes, era por caridade.
Quando surgia alguma observação a respeito da desigualdade apareciam as desculpas de sempre: era o destino, que a vida é assim mesmo, e a pior das desculpas era que a culpa era das próprias vítimas, possivelmente não cumpriam corretamente as obrigações, preferiam assim pois eram preguiçosos, desprovidos de ambição ou era uma questão hereditária e de destino, por isso são punidos.
Suspeitava que não podia ser assim, Que pecado cometeram? Deus dispõe do purgatório (ainda existe?) e do inferno, por que precisamos sofrer na terra? Os argumentos racistas são facilmente desmoralizados, basta dar uma olhada no que aconteceu em outros países pelo mundo. Nesse aprendizado ninguém falava, por exemplo, da colonização das Américas, com extermínio e escravização de povos, resultando no maior genocídio e barbaridades da humanidade.
O assunto é polêmico, geralmente simplificado, mas deixou marcas profundas. Para amenizar a vergonha enaltecemos o lado interessante dessa herança, o folclore, a comida, o enriquecimento da língua, sem esquecer o lado científico, a miscigenação, além da beleza das morenas, nos deixou imunizados para bactérias de origem asiáticas, africanas e européias.
Essa animação toda esconde um lado cruel, do qual a Proposta de Emenda à Constituição, conhecida como PEC das Domésticas, aprovada por unanimidade pelo Senado Federal, teve o efeito de desembrulhar o pacote de desrespeito, preconceitos e discriminação que sofriam e sofrem as nossas empregadas domésticas. Sem tirar ou botar, herdeiras diretas das mucamas das casas grandes. Afinal elas são trabalhadoras iguais a qualquer outro. De repente, os patrões e patroas descobriram que elas não estão preparadas para o ofício ou que vai onerar o orçamento familiar, mas a responsabilidade, seguramente, não é das domésticas. O lamentável é que enquanto os países desenvolvidos começaram a resolver, definitivamente, as questões referentes aos seus servos e empregados há quase 100 anos, por volta do final da 1º Guerra mundial, nós brasileiros continuamos indiferentes à exploração das domésticas. Mas como nunca é tarde, finalmente os senhores das leis, após 126 anos se lembraram que uma lei assinada por uma princesa acabava com a escravidão e precisava ser complementada.  

terça-feira, 7 de maio de 2013

As tias High-Tech e o continente afundado - José do Vale Pinheiro Feitosa


Chico Véi estava com o pé no último degrau que dá acesso à varanda da casa, aproveitando para apagar a ponta do lasca-peito e em seguida guardá-la na cova da orelha até as próximas baforadas. E foi aí que de sua calma franciscana saltou um bento de aflição: as galinhas vinham em desembestada fuga de dentro de casa. Não deu nem para chegar ao número dezesseis do bento e ele já renunciara à sua placidez. Os gritos de uma das tias high-tech havia despertado o cacarejo das bípedes penadas em debandada.

Chico Véi, nos mesmos degraus que subia, desceu e foi para seu “castelgandolfo” abrigar-se dos destemperos do mundo. Acocorou-se no terreiro de casa, acendeu a inhaca curtida do lasca-peito no acomodar-se dos poleiros ao entardecer. Agora volte com a câmara em disparada até a casa das tias high-tech onde tudo começara.

Tia Mundinha estava na cozinha bebendo um café com pão torrado no fogão à lenha, com a nata dourada de tanto assar, quando ouviu os gritos de tia Rosinha. Tia Maria arrancou os óculos do nariz, abandonou seu smartphone sobre a cadeira e saiu com passos apressados na direção do quarto em que tia Rosinha passeava nos sites da internet.

Tia Mundinha e tia Maria chegaram juntas à porta do quarto e encontraram tia Rosinha dizendo alto: viram? Viram aqui? Em dueto perfeito perguntaram: viram o quê mulher?

- O continente que afundou! Uma nova Atlântida!

- Afundou? – pergunta tia Mundinha.

- Onde! – completa tia Maria.

- No Rio Grande do Sul. O bicho tem mais de 1500 quilômetros e há montanhas tão altas quanto algumas montanhas dos Andes.

- Quando foi mulher que aconteceu esta desgraça toda? – curiosa tia Maria.

- No fim da pangéia.

- Da pangéia? – tia Mundinha exprimindo sua incompreensão da palavra.

- Quando as Américas se separaram da África este continente inteiro afundou bem aqui do nosso lado.
- Lá no Rio Grande do Sul? – tia Mundinha quis diminuir a importância.

- Isso é mais velho que a Serra do Araripe – tia Maria tentou puxar tia Rosinha para a contemporaneidade.

- Mulheres! Tomem juízo! – Tia Rosinha contextualizava o assunto – Nós temos um continente que afundou. Somos iguais aos gregos que ainda nos olham com aquele olhar de civilização. Agora ninguém segura mais o Brasil. Nós temos é dois continentes. Igual a um beliche. Um embaixo e outro em cima.

Mas retornando à presença de Chico Véi. O olhar dele deitava a esperança que este ano de seca logo chegasse a dezembro e o inverno viesse com todas as águas caídas do céu. E daí houvesse um continente de legumes.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

A CULPA É DO LULA - José do Vale Pinheiro Feitosa


O Lula é o culpado de tudo com o “bolsa esmola” e o “segura vagabundo”. A confirmação me chegou por e-mail hoje. Em Aquiraz a presença de caraminguás no bolso dos pescadores em razão daquelas doações do Lula melhorou os negócios no cabaré de Dona Tarcília Bezerra. É o business: o jeito foi ampliar as instalações para correr mais freguesia e os apurados das noitadas.

Acontece que uma congregação da Igreja Universal do Reino de Deus juntou-se em orações e exorcismações a varar o silêncio do bairro popular.  Apagar da face da terra o cabaré de Dona Tarcília. Eis o vaticínio daqueles fieis de olhos esbugalhados, da saliva gasta e das cordas vocais em últimos decibéis.

Acontece com toda obra. Um dia ela acaba e fica pronta para receber a freguesia ampliada. A nova iluminação, suspeito que até por comando digital, estava pronta a estimular todos os tipos de desejos carnais. As colunas de Sodoma a Gomorra estavam a postos para espalhar o sêmen do pecado nas horas escuras das noites.   

E foi aí que os céus se manifestaram e numa disenteria de espantar a moça do tempo, abriu ventanias arrasadoras e trovoadas ensurdecedoras. E foi quando do centro de um cumulus nimbus mais pleno de águas saiu um raio fatal que destruiu toda a fiação e abriu um incêndio que incinerou o telhado e outros recursos da reforma de Dona Tarcília.

Aí a congregação entrou em delírio de fé. A força de Deus se manifestara bem no alvo do pecado. Nunca se viu tamanha comemoração como naquele dia em que todos viram ao vivo e a cores a manifestação plena de Deus. E não só a prova de sua manifestação mas a prova de que Deus atendia às suas orações e aos seus reclamos.

Ora, Dona Tarcília não é besta e abriu um processo contra o pastor, a igreja e toda a congregação com o seguinte fundamento legal: eles teriam sido os responsáveis pelo fim do seu prédio e do seu negócio, utilizando-se da intervenção divina direta ou indireta e das ações ou meio.

O Juiz manda ouvir os acusados e estes negam toda e qualquer responsabilidade ou qualquer ligação com o fim do negócio de Dona Tarcília.

E foi ai que na primeira audiência entre acusados e acusadores o Juiz se manifesta: eu não sei como vou decidir neste caso, mas uma coisa está patente nos autos do processo.

Temos aqui uma proprietária de um cabaré que firmemente acredita no poder das orações e uma igreja inteira declarando que as orações não valem nada. 

domingo, 5 de maio de 2013

A vida verdadeira

Não, não tenho um caminho novo.
O que tenho de novo
é o jeito de caminhar.
Aprendi
(o caminho me ensinou)
a caminhar cantando
como convém
a mim
e aos que vão comigo.
Pois já não vou mais sozinho.
(Thiago de Mello)


Canalhice e afetação.


A correspondência de uma estação de cura, de João do Rio (pseudônimo de Paulo Barreto), obra publicada em 1918, pertence a um gênero praticamente desconhecido em nosso país, o das narrativas epistolares. Tratada como “romance” pela crítica, não passa, entretanto, de um conjunto de crônicas travestidas em cartas, o que fez surgir uma noveleta na qual, segundo Antonio Candido, “a felicidade do método é superior à relativa banalidade do tom e da visão de mundo”.
A história desse gênero pouco valorizado no Brasil confunde-se, na Inglaterra, com o surgimento do próprio romance. Quando o impressor Samuel Richardson aceitou, em 1739, a encomenda dos livreiros Rivington e Osborn de escrever um volume de cartas que servisse como modelo a leitores sem grande preparo para a escrita, não previa o resultado da sua concordância. A concepção da obra obrigou-o a elaborar contextos inusitados, a fim de diversificar os modelos e criar um manual o mais completo possível. Esses exercícios de estilo estimularam sua imaginação, a ponto de fazê-lo escrever o romance epistolar Pamela, que se tornou uma das obras mais influentes do século 18 (também produziria, seguindo o mesmo gênero, dois outros romances de sucesso: Clarissa e The history of Sir Charles Grandison).
A importância do romance persiste até hoje. O crítico Frank Kermode mostra, no ensaioRichardson and Fielding, que a prosa epistolar em geral e a obra de Richardson anteciparam questões colocadas, séculos mais tarde, por Joseph Conrad e Henry James, como a do desaparecimento do autor, pois a técnica de escrever por meio de cartas permite às personagens que falem com suas vozes características, sem a intermediação de narradores. Não por outro motivo, estudiosos consideram Richardson um dos criadores do romance psicológico, já que as cartas e o diário de Pamela apresentam os complexos sentimentos e reflexões de uma jovem de quinze anos.
O que foi grandioso nas mãos de um impressor inglês — e se aperfeiçoou com Rousseau (Julie ou la nouvelle Héloïse, 1761), Goethe (Os sofrimentos do jovem Werther, 1774), Chordelos de Laclos (As ligações perigosas, 1782) e Ugo Foscolo (Ultime lettere di Jacopo Ortis, 1802) — tornou-se, contudo, medíocre sob a pena de João do Rio.
Difamadores
As cartas que compõem A correspondência de uma estação de cura pertencem a diversos missivistas instalados em Poços de Caldas, famosa estância hidromineral na primeira metade do século 20. A elite carioca e paulista, impedida de ir à Europa pela Guerra de 1914, ocupa o melhor hotel do município mineiro e entrega-se aos divertimentos possíveis: jogatina, banhos sulfurosos, shows noturnos, cavalgadas — e mexericos, intrigas, a nobilíssima arte de falar mal uns dos outros.

De carta a carta, das fofocas irônicas do dândi Antero Pedreira às lamúrias de José Bento, misto de empresário artístico e reclamador profissional, passando pelas teses naturalistas do neurastênico Teodomiro Pacheco, os narradores repetem o mesmo exercício: caluniar e rir, à socapa, das pessoas com as quais convivem diariamente.
A confiar no que diz Lêdo Ivo na “Apresentação” de Cinematógrafo (Crônicas cariocas), o cronista conhecia bem a classe que descreveu:
o gordo e triunfante e bebedor de champagne João do Rio transitava nos salões mundanos e nas embaixadas, com os seus ternos de fazenda inglesa, o seu monóculo, e a sua frase cintilante. E, em grandes e demoradas viagens, respirava a brisa dos transatlânticos.
Além de, completa Ivo, posicionar-se “ostensivamente ao lado dos ricos e bem-nascidos” e cortejar “desembaraçadamente os comendadores portugueses que costumavam abastecer-lhe os bolsos sempre furados de dissipador incorrigível”.
Infiel ou não à classe que o sustentava, João do Rio alinhavou essas crônicas em que o exagero, as repetidas maledicências e o tom monocórdio da correspondência ativa dos difamadores destroem qualquer possibilidade de verossimilhança.
No que se refere à psicologia dos personagens, não há conflito entre o papel que desempenham em sociedade e o que realmente pensam, pois são incapazes de realizar qualquer mínima autoanálise. Com exceção de algumas das cartas de Teodomiro Pacheco e das escritas pela jovem Olga da Luz, o olhar dos narradores está sempre voltado aos supostos defeitos de outrem.
A obstinação para descrever casos frívolos concede à narrativa irrefreável tendência ao episódico, o que faz a noveleta se dissolver numa clara falta de unidade estrutural. A única trama curiosa, citada em algumas cartas, é a sedução da inocente Olga da Luz, dona de imensa fortuna, pelo imoral Olivério Gomes — e a tentativa, dos outros pretendentes, de atrapalhar o possível noivado, trazendo a Poços a amante de Olivério, uma prostituta. Tudo transcorre, no entanto, em clima de vaudeville.
Ou seja, se o tema é ordinário, o método, diferente do que argumentou Antonio Candido, mostra-se frouxo, debilitado. Mais razão tem Lúcia Miguel-Pereira (em Prosa de ficção), para quem o livrinho “nem chega a merecer o título de novela”.
Falsa elegância
Em meio à coleção de pedantismos e ao persistente tom de zombaria, surgem ilhas de curiosidade, como a carta do Capítulo XIII, na qual Teodomiro narra a história bem-humorada do caboclo que se alimenta apenas de café — um faquir do interior mineiro. No entanto, a maior parte dos capítulos pouco acrescenta para formar um eixo consistente.

O lugar-comum predomina, como no Capítulo XXXV, assinado pela casamenteira Maria de Albuquerque, em que João do Rio plagia, sem pudor, certo episódio de A dama das camélias. Além dos chavões, não faltam figuras melosas, pois os narradores escrevem mal; e se repetem, tamanha a semelhança de sentimentos ou, quem sabe, a falta de criatividade do autor: o luar tem a “doçura de lírios diluídos” numa carta de Antero Pedreira, que completa: “[...] Sobre as árvores, recamando as colinas, abrindo no espaço o êxtase azul da luz, ligando céu e terra no mesmo espasmo, o luar esplendia”; imagem que surge, sob o mesmo véu de preciosismo, na carta seguinte, assinada por Olga da Luz: “[...] Faz um esplêndido luar, desses luares que choram sobre a terra”.
O máximo de reflexão que essa manada de pulhas alcança — sem nunca revelar a menor chama de integridade — é dizer, num rompante:
[...] A esposa deve ser inteligentíssima sempre. As amantes pouco importa. Ça ne compte pas… Para que o amor não fosse uma cacetada seria preciso que as esposas fossem a tal ponto inteligentes que deixassem o ciúme para diversão das amantes estúpidas… [...]
Dos ricos aos falidos, dos aristocratas aos sanguessugas, todos usam linguagem semelhante — nos discursos da elite há mais anglicismos e galicismos, recurso que o autor utiliza para demonstrar a elegância de certos personagens. E todos são vis, mesquinhos, afetados.
“Espuma inconsistente”
Na resposta que escreveu à crítica de Viriato Correia, em julho de 1918, João do Rio diz que

o romance em língua portuguesa, depois de Eça e de Aluísio de Azevedo [...] chegou à indigência impossível de leitura. Total ausência de idéias, uma história qualquer dividida em capítulos e nesses capítulos o que eles chamam de observação natural. Coisas enfim que não interessam a ninguém.
E defendia — depois de afirmar que Machado de Assis era “autor de volumes que poderiam ter todos o título geral de Memórias” — a tese de que,
artisticamente, a individualidade é tudo. A individualidade começa pela técnica. Há mil modos de fazer uma jarra. Criar o seu modo e pôr-lhe o sangue das suas idéias é sempre fazer jarras mas de outra maneira.
Tais superficialidades demonstram como a avaliação errônea e a incompetência podem levar um escritor a resultados grosseiros.
Monteiro Lobato, nos comentários que fez sobre o livro — e que podem ser lidos no volumeCrítica e outras notas —, aponta o “linguajar cambaio”, a “charrice” das “idéias simiescas” e a “pretensa elegância canalha”. Lúcia Miguel-Pereira classifica o texto do cronista como “espuma inconsistente”. Ambos estão certos. Errados são aqueles que elogiam tais coisas.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Valdomiro Silveira e Os caboclos.