por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



segunda-feira, 2 de abril de 2012

MEMÓRIAS DA PANELA ABANDONADA, por António Barbosa Tavares




Num dia invernoso, com clarões de sol primaveril permeados por uns fios de vento, viagem ao Portugal-aldeão que alberga ternas e saudosas venturas da infância e também as constristadas memórias de um tempo irrecuperável. Fui com minha mãe e meus irmãos ao seu lugar de nascença visitar os dois únicos tios que ainda restam nas suas casas graníticas alcantiladas nas serranias de um ignoto lugarejo nas austeras serranias Sevenses.

De uma outrora farta casa de lavrador, com longos alpendres e criadagem, pertença de meus avôs-maternos, cujas pedras couberam em herança a um genro que as retirou uma a uma, restavam agora apenas a eira, um enorme lajedo recoberto de musgos com tufos de ervas e silvas que emergiam por entre as fissuras das pedras.
Minha mãe não conteve uma exclamação meia sussurada e pesarosa provinda das recordações da juventude: “ Eram aqui nesta eira os bailaricos do João do Esquiero com a sua concertina “, comovida desatou a nomear todas as moçoilas do lugar e do seu tempo e mais três que ocorriam ao local do bailarico de aldeolas vizinhas, donairosas nas suas roupas domingueiras com seus tamancos pretos lustrosos.
Eram a Celeste do Souto, a Aida de Riba, a Maria da Eira , a Leopoldina, a Deolinda do Esquieiro, a Maria do Andoreira e a Esmeralda da Cancela.
Os rapagões, calcorreavam a serra desde as margens do Rio Vouga com seus coletes perfilados a rigor, casaco sobre os ombros, por carreiros entre pinhais frondosos e carvalhais ao encontro das suas eleitas deusas.
Ocorreu-me que ali a três passos morava um casal de velhotes “orfãos de filhos”, octagenários nos tempos da minha infância, o ti António era um homem baixote, rosto de lua-cheia, bigode farfalhudo e unas exíguas franjas de cabelo a contornarem uma calvície rigorosamente circular, com seu chapéu puído de aba larga de fita negra imbuída de suor e pó, homem de poucas e mansas palavras, alma cerzida na agrura dos tojeiros do monte nas rudes fainas agrícolas do arado e charrua. A Ti Deolinda era uma mulher vivinha , de lenço amarrado da cabeça ao queixo e língua solta para pregar uma piada, esguia e conversadeira , porém de uma poupança que roçava a miséria.
*
Não resisti a espiolhar a casa em ruínas num estado de violenta degradação, Nem um único vidro ou memória deste nas janelas. Uns fiapos de madeira suspensos do caixilho apodrecido testemunhavam a voracidade to tempo e a incúria dos herdeiros.Entrei no casebre, avancei com cautela redobrada sobre o soalho ondulante a ranger pleno de frinchas, e deparei com uma panela de ferro bojuda de três pés, esquecida sobre um monte de cinzas, porventura ali abandonada há uns bons decénios.
O meu irmão sabendo do encanto que eu manifestara pela panela e que eu ao tentar tocar-lhe poderia o soalho ruir e eu acabar alcavalitado sobre o desmoronado curral dos porcos, avançou lesto e seguro pelos recanto da cozinha melhor escorada e colheu a dita.
Como sabia de fonte segura que os falecidos proprietários não possuem herdeiros, e ninguém me processaria pelo furto apoderei-me da panela e tenciono escrever-lhe as memórias se para tanto o engenho e a paciência me ajudarem a reconstituir os factos históricos daqueles arredios tempos nestes termos:
“Devo ter sido mercada em reis, não sei exactamente quantos por volta do ano de mil oitocentos e oitenta e três e fundida numa das poucas usinas existentes do Distrito de Aveiro. Dom Carlos era ainda um jovem monarca quando meu amo se consorciou e viveria apenas mais sete magros anos até ser violentamente despojado da realeza.
Como dizia , sou levada a crer ter sido mercadejada, porventura em Vale de Cambra, pois não constam que existissem lojas de ferragens e objectos similares em na pacatíssima vila de Server do Vouga.
Ainda me recordo da longa jornada empreendida a pé por carreirinhos entre as altaneiras serranias, vim às costas de meu amo num saco de serapilheira misturada com um podão uma foice e cordas avulsas enquanto a esposa de meu amo seguia atrás com dois bacorinhos que levaram toda a jornada a rosnar presos por um atilho aos artelhos, carinhosamente sacudidos pela folhagem de um ramo de eucalipto”...

Antonio B.Tavares- colaborador do Azul Sonhado

Um comentário:

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Qualquer brasileiro dos tempos atuais que leia este texto deverá se acompanhar de um dicionário. Mas ouso dizer que também é verdade para os portugueses. Este é um texto que efetivamente viaja no tempo não apenas do lugar, mas da língua. Dos afazeres das vilas e das quintas. Eis um texto a visitar o abandonado Portugal pelas vias de pedágio construídas pela Comunidade Econômica Européia. Esta mesma comunidade que limou aquele passado e certamente o faz com o presente em face da crise econômica