por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



domingo, 2 de dezembro de 2012

A Serpente da Feira - José do Vale Pinheiro Feitosa


Este eixo vertical sobre pernas andarilhas te levarão por veredas, ladeiras e garranchos de antigo matagal viçoso e promitente. No labirinto de calçamentos tuas bancas armadas, as roupas dependuradas e os sacos de farinha, arroz, milho e feijão assentados um ao lado do outro. As estrelas mandam na abóbada mais celeste do que aquele azul banal dos dias. As noites são mais celestiais. Mais celestiais quanto menos reveladoras, mais subentendidas e ocultas como os mistérios da nossa ignorância. Quem sabe jamais conhecida e por isso mesmo misteriosa.

Duas coisas se expandem nos cânions da colmeia humana: os cheiros e o vozerio. Os odores são variados e um quase soterramento dos milhares de cheiro já impregnados na urbanidade. Os extratos oleosos, sobre a pele ou nos cabelos se expressam de passagem, no caminhar entre outros. Ali um pálido perfume de leguminosas, diria que quase parente do gorgulho: da saca de arroz, a farinha da serra, o feijão de corda com as lembranças das palhas fragmentadas nas pauladas de sua debulha.  

Mas o odor que domina a cidade é aquele de cebola e alho e parece serpentear como uma sianinha amarela através das esquinas em todas as ruas da cidade. É bem que a feira da corda tem aquele ranço de matéria palhenta, a agave seca com memória do seu viço de verde na origem. Na feira da rapadura os odores de engenho sedimentaram-se, se tornaram alicerce, muito mais duro e invariante do que a exuberância da azáfama da engenhosidade de canas, moendas, bagaços, caldeiras, garapas azedas, destilação de alambique, fornos, tiborna, mel e alfenim.

Frutas verdes têm cheiro de cica. Maduras de nuvens de mosquito. Podres de lavagem de porco. Balaios despejando fragrâncias de coentro e um si bemol de cebolinha. Estas verduras são tão excelsas que anulam as bancadas de cenoura, beterrabas, batatas e jerimum. Se na safra, a ousadia das copas sombreadas se projetarão na feira com o domínio das mangas que não apenas se repete no verbo homônimo posto que desnecessário. Os cheiros envolvem todo o prédio do mercado. Todos os produtos foram mangados pelos frutos das mangueiras.

E que não dirá meu corpo pedinte, tendencioso, vulnerável, tonto de tantas mensagens ofertantes, entre microfones a decibéis, a ladainha do consumo e esta passagem desvairada de corpos em sentido contrário como a rogar alguns decímetros de ocupação. Perdido em mim e na multidão eis que jorra a sedução feminina. Com seu corpo de espargir dor de amor, grilhões de arrastar pensamentos e fixar o monobloco da unidade inseparável do imantado. Torno-me a cauda daquele cometa no labirinto da feira.

Ei Rosa dos Ventos. Não existe um GPS a traçar destino. Caudal daquele corpo feminino destino algum me comove, para frente, para trás, à esquerda ou à direita. Mesmo que seja um círculo. Apenas me resta o arrasto de uma cabeleira que é ao mesmo tempo lucidez e loucura, um pescoço como um abismo do meu iminente despencar, ombros que me transformam num polvo cheio de ventosas para não apenas agarrar aquela pele que é a síntese do mundo. Ventosas para sugar o indecifrável deste desejo.

Abomino todas as portas. Se fosse São Jorge lancetava são Pedro apenas pela função de porteiro. As portas perversas, pervertidas, a manha do antimundo. A traição da abertura e da liberdade que até então era plena. Inconsciente, mas suprema. E porta fecha aquele objeto inseparável de toda a minha loucura. Aquele momento após o qual, uma vez atendido todo caudal da minha elucubração, o mundo seria pleno e a feira se pulverizava num monturo de sentidos. Uma vez não realizado o sentimento os sentidos se tornam cinco isolamentos. Desconectados, incompreendidos e insensíveis.

Esvaziado. Não cansado. Mas desprovido. A feira morreu. É um silêncio de pilha fraca. O indistinto do cristalino opaco. O inodoro do final de feira. E, no entanto, meu eixo vertical há de mover as pernas por quilômetros mato adentro. Salvam-me as papilas gustativas: um tijolo viscoso ao dente, de leite e açúcar, de esticada narrativa do sabor, tomando gengivas, as língua, o céu da boca, a garganta e mesmo quando desce pelo esôfago parece manter o paladar do ato de fabricá-lo.

São Joaquim Patrício salvou-me os próximos quilômetros do meu recolhimento noturno.    

Um comentário:

socorro moreira disse...


Hoje é dia de feira, e vc trouxe de volta esta zoada...Trouxe figuras "santas" do passado...Trouxe um tijolo perdido de felicidade.

Amei o texto!