J. Flávio Vieira
“A beleza pode ser vista
em todas as coisas,
ver e compor a beleza é
o que separa
a simples imagem, da fotografia”
Matt Hardy
Matt Hardy
A aquarela caririense esmaeceu esta
semana, quando caíram por terra a câmara e o pincel da nossa querida D. Telma Saraiva.
Fechou-se, naquele instante, uma gloriosa página da Cultura do Sul do Ceará,
quando plainou , a caminho do infinito,
a última pioneira da fotografia na nossa região. D. Telma descendia de
uma plêiade de fotógrafos que , por quase cento e cinquenta anos, vinha
registrando, meticulosamente, o cotidiano caririense, as mudanças e os impactos
nas nossas paisagens exteriores e interiores. Desde Manoel Biserra de Mello , o
primeiro fotógrafo itinerante que por aqui aportou em 1886; passando por Luiz
Gonzaga Martiniano da Costa que firmou o primeiro ateliê fotográfico da região em
1901; por Pedro Maia, o artista da câmara mais importante nos anos 20-30, até Júlio Saraiva Leão que
entregou o bastão à filha; somaram-se,
sucessivamente, os nossos cronistas
fotográficos em terras de Frei Carlos. Esta semana, por fim, quebrou-se, indelevelmente,
o último cálice de cristal da nossa prateleira. Estilhaçou-se o Daguerreótipo
e, por incrível que possa parecer, um daguerreotipo colorido.
D.
Telma descendia de uma tradicional família ligada umbilicalmente às artes . Seu
Tio, Cesário Leão, fora ator e músico; Salviano Saraiva , irmão, um dos mais
renomados atores caririenses e , depois, o mais importante fotógrafo de estúdio
da capital pernambucana. Sem falar em Júlio Saraiva, seu pai, um dos pioneiros
da fotografia no Ceará e um urbanista dos
mais inspirados. A Júlio devemos os mais bonitos cartões postais de Crato nas
décadas de 40-60. D. Telma nasceu neste berço artístico e teve sua vida
congenitamente traçada. Dedicou-se, desde cedo, embebida pelo cheiro do colódio
e da prata, à fotografia e especializou-se em fotos de estúdio, talvez porque
lhe fosse mais fácil conciliar a arte que abraçava quase como predestinação, às
atividades domésticas. E mais, artista
plástica intuitiva, descobriu que era possível sim, associar a fotografia à pintura, com vantagens vultosas. Conseguia dar
cores às fotos ( numa época do preto-e-branco) , tirar possíveis incorreções ou
defeitos ( uma espécie de photoshop pré-histórico) e dispensava as longas seções de pose dos
modelos imprescindíveis em caso de pinturas. Essa técnica apurada , nos últimos
tempos, terminaram por lhe dar renome internacional.
A
Fotopintura havia sido inventada por
Disdéri em 1868 e foi introduzida no Brasil por um dos únicos fotógrafos
portugueses da nossa história : Insley
Pacheco. Aqui, no Cariri, a técnica fora empregada pela primeira vez pelo
fotógrafo itinerante José Ribeiro em 1904. Telma Saraiva aperfeiçoou a técnica
original, montando-se na intuição e nos novos avanços tecnológicos da arte
fotográfica.
Outro
pioneirismo da nossa artista foi de gênero. A Fotografia no mundo sempre foi
extremamente masculina. No Brasil, nos
primórdios da arte, apenas uma mulher havia se destacado: Henriqueta Harms que
montara um ateliê no Rio de Janeiro em 1851. D. Telma Saraiva teria sido um caso único no nosso estado e
deve ser considerada a grande Dama da Fotografia no Ceará.
Pacientemente,
entre os cliques e pincéis, nossa
artista bordou um gigantesco painel iconográfico da região. Sua Galeria não se encontra fechada entre muros : expõe-se
no mural da Chapada do Araripe. Suas fotos estão expostas em milhares de lares,
registrando o verdor dos anos e os
sorrisos abertos de muitas e muitas gerações. Foi um prisma que, entre nós,
obrou o milagre estonteante da refração. Hoje, depois do último clique da antiga
Rolleiflex, o Cariri todo se dá conta de que, quando D. Telma pintava as fotos de estúdio,
transformando sépias em aquarelas , ela não apenas coloria rostos e faces sorridentes, ela enchia de cores e de
brilho a própria história caririense.
Crato, 12/06/15
2 comentários:
Zé Flávio, um abraço em seu texto. Precisamos muito falar do nosso território e você acaba de fazer um painel histórico da fotografia nele (sem necessidade de esgotar o assunto). E o aborda o de modo atual, quando, por exemplo, destaca a questão de gênero encara por Telma Saraiva. Precisamos destas lembrança para que saibamos buscar e encontrar o que somos e porque somos do modo como nos expressamos. Isso não é mera lembrança do passado, é dar cor ao presente.
Abraços
José do Vale
Grande abraço, primo e obrigado pelas palavras e os comentários tão pertinentes.
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