Entre a utilidade e a inutilidade há um largo continente. Sempre
é assim toda vez que resolvemos distinguir as coisas a partir de uma afirmativa
ou a sua negativa. Fora da distinção realizada existirão outros atributos das
coisas que não cabem no marco de diferenciação. Em outras palavras existe um
universo além da classificação de seus termos e conteúdo.
O filósofo inglês Roger Scruton, conservador, diz que “todas
as coisas mais importantes são inúteis: amor, amizade, devoção, paz – essas coisas
que apreciamos pelo que são e não pelo uso que podemos fazer dela.” E de fato
num mundo materialista, consumista e utilitarista esta frase parece revelar
algo pleno e, no entanto, deixa de fora toda história da humanidade em relação
as inutilidades identificadas por ele.
Toda a literatura humana e a tradição oral diz muito do
amor, da amizade, da devoção e da paz. E diz muito não em termos contemplativos
e apenas pelo seu valor intrínseco e significante. É que até onde se pode
pensar nestes termos a utilidade é sua marca.
O que seriam os romances, as poesias, as canções e quase
todas manifestações de arte e dos textos religiosos se não fosse o uso do amor,
da amizade, da devoção e da paz. Em todos eles existe a conquista, a imposição,
a concordância, a negação, a traição e o uso normativo como maneira de
controlar as pessoas e as sociedades.
Basta que se lembre a famosa Pax Britannica, já em si uma
réplica farsante da Pax Romana, para que se entenda a utilidade da paz para os
objetivos do Império Britânico no domínio do comércio mundial e de colônias
onde o sol nunca se põe. Que se entenda a devoção como útil à manipulação de
pessoas sob a forma mais variada de uso, desde o religioso, passando pelo
político até o circuito de amigos e da família.
Chega. Não preciso falar mais do amor e da amizade pois
certamente o seu uso, também é claro a todos. Mesmo assim soa contraditório
quando o filósofo diz que “a beleza é um objeto do amor” encontrando no amor
uma dinâmica entre si e seu objeto e, no mundo, tudo que é dinâmico, ação, é
passível de utilidade pelos seres humanos.
E novamente retornamos à diversidade. O Ocidente desenvolveu
uma forma de compreender o mundo e traduz estas coisas como o filósofo: “O
Sagrado e o Belo estão conectados em nossos sentimentos – ambos nos mandam
ficar atrás, ser humildes e abandonar nosso desejo inato de poluir e destruir”.
E conclui: “vários artistas hoje...têm um senso de que o que há de melhor em
sua arte é o ato de consagração.”
Mas acontece que a dependência da arte à devoção e a
consagração é uma parte da história humana, não é toda ela. Na própria arte
ocidental existe inúmeras formas de arte relevante que denunciam, que
confrontam a realidade, que tornam a história um objeto de análise racional.
A conservação é inerente ao desejo da permanência, mas o
conservadorismo é uma forma de manter privilégios numa sociedade desigual e por
isso quando as dores da desigualdade permanecem o ímpeto é superar, acabar a
causa da dor.