Como surgiu a imortal dupla do baião
Os primeiros sucessos de Luiz Gonzaga, como cantor, surgiram em 1943, dois anos após ter sido contratado pela RCA.No início de sua carreira, Gonzaga atuou apenas como solista, por uma imposição da própria gravadora.As primeiras músicas cantadas por ele compostas em parceria com o fluminense Miguel Lima logo se tornaram conhecidas do público.São dessa época músicas famosas como Cortando o Pano, Dezessete e Setecentos, Penerô Xerém e Mangaratiba, entre outras.
Apesar do êxito, a parceria com Miguel Lima não durou muito tempo. Luiz, de formação genuinamente sertaneja, queria gravar músicas que falassem de sua gente, do seu longínquo pé-de-serra. Ele tinha a melodia e precisava de alguém que fosse capaz de colocar a letra. Miguel Lima, no entanto, não se integrava muito bem com o projeto artístico de Luiz Gonzaga de querer lançar, no Rio de Janeiro, as músicas brejeiras do Norte. Por isso ficaram juntos somente até 1945.quando Gonzaga viu-se obrigado a procurar um outro parceiro que, como ele, estivesse disposto a cantar o Nordeste.E foi na poesia do jovem advogado cearense, Humberto Teixeira que Gonzaga encontrou a sua nova parceria.
Vencedor de Concurso
Humberto Teixeira nasceu em Iguatu, cidade do sertão cearense, a 5 de janeiro de 1916, de onde, aos dois anos de idade, saiu para residir em Fortaleza.Aos seis anos, aprendeu a tocar musete (uma versão francesa da gaita de foles) com o seu, o maestro Lafaiete Teixeira.Tocava flauta e bandolim e, com 13 anos, fazia parte da Orquestra Iracema, a qual regida pelo maestro Antônio Moreira, musicava os filmes mudos no Cine Majestic, de Fortaleza. Em 1931 o garoto Humberto Teixeira radicou-se no Rio de Janeiro, onde, aos 18 anos, em 1934, descobriu que a sua vocação estava indiscutivelmente voltada para a música.Venceu, neste mesmo ano, o concurso de música carnavalesca promovido pela revista “O Malho”, com a música “Meu Pedacinho”.A sua música foi classificada ao lado de outras compostas pó gente famosa, como Ari Barroso e Cândido das Neves.Em pouco tempo, Humberto foi se tornando amigo de Lamartine Babo, Benedito Lacerda, José Maria de Abreu e de outros cantores e compositores daquela época.
Quando, em 1943, formou-se advogado pela Faculdade Nacional de Direito, Humberto Teixeira já havia composto sambas, xotes, marchas e toadas. Sua primeira música a ser gravada foi “Sintonia do Café” lançada por Déo, em 1944.Outras composições de Humberto foram gravadas nessa mesma época: Só uma Louca Não Vê (Orlando Silva); Deus me Perdoe (Ciro Monteiro; Meu Brotinho (Francisco Carlos) e Natalina (Quatro Ases e Um Comigo).
Encontro com Luiz Gonzaga
Desfeita a parceria com Miguel Lima, Gonzaga estava agora à procura de um novo parceiro. Admirava muito as músicas compostas pelo cearense Lauro Maia, interpretadas com sucesso pelo conjunto “Quatro Ases e Um Coringa”. Decidiu, então, procurar Lauro Maia, que se mostrou pouco interessado na proposta apresentada. No entanto, disse conhecer a pessoa certa para ser seu parceiro e apresentou Luiz Gonzaga ao seu cunhado, Humberto Teixeira.
O encontro do pernambucano Gonzaga com o cearense Teixeira deu-se numa tarde de agosto de 1945, no escritório do bacharel, na Avenida Calógeras, no Rio. A conversa, animada, prolongou-se até à noite e.ao fim de algumas horas, já haviam acertado os detalhes da nova empreitada. Nesta primeira conversa, concluíram que o baião era o mais urbanizável e estilizável dentre todos os ritmos de música do Nordeste.
Logo no primeiro encontro destes dois nortista surgiu o esboço do que veio a ser xote No Meu Pé-de-Serra.
“(...) Solfejei a música, Humberto olhou-me meio descrente e perguntou-me:
-Já tem algum começo, um principiozinho de letra?
Cantei:
“Lá no meu pé de serra
Deixei ficar meu coração”...
Fez sinal de que parasse.
-Ótimo.Agora solfeje a música, bem devagarinho...
Rabiscava umas coisas num papel pra repetir.
Quando terminei dei uma espiadela no papel. Admirei-me de vê-lo coberto de versos.
-Mas que beleza!Exclamei entusiasmado.
Com que rapidez você faz letra rapaz!
Riu e adiantou:
-Às vezes faço música ainda mais depressa, embora cante pior que todos os cisnes do Capitólio. mas o que fiz agora não é a letra ainda não.
Isso é só o “monstro”. A letra faço depois. Eu, que lera por alto e gostara, protestei:
-Tá conversando!Nesse aqui você não bole mais. Tá muito boa, Humberto.
-Calma Luiz. É uma letra provisória, pra me basear. Faltam os retoques, mudar umas coisas. Quando vier, vem outra”(1).
E assim teve início a parceria de Humberto Teixeira com Luiz Gonzaga, onde as qualidades poéticas de um foram aliadas à capacidade melódica e interpretativa do outro. Dessa união resultou um grande incremento à nossa música, devido à excelente qualidade do que produziram.
“A minha parceria com o Humberto Teixeira foi perfeita, assim como uma luva que se encaixa na mão de uma pessoa” (2).Assim se expressou Luiz Gonzaga ao ser interrogado a respeito do parceiro.Ainda segundo Luiz Gonzaga “Humberto Teixeira era um grande poeta. Juntava sertão e asfalto numa mesclagem muito bem bolada, de onde saíram coisa bonitas”(2). De fato, Luiz precisava mesmo de alguém como Humberto Teixeira, que, além de ser um poeta dotado de uma capacidade indubitável, era também instrumentista e profundo conhecedor da vida e dos costumes sertanejos.
Nasce o baião
O baião, também chamado “baiano”, teve sua origem na batida dos violeiros do sertão, conforme estudos já divulgados. Esse ritmo, no entanto, era conhecido apenas nos estados nordestinos.O que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira fizeram, na verdade, foi urbanizar e estilizar o baião, dando-lhe um novo aspecto.Na sua versão primitiva, cantada por violeiros, o baião apresentava-se entremeado de falas, o que atrapalhava a continuidade da música.Conforme declarou Humberto Teixeira: ”Estilizamos as principais características, traduzimos os modismos do Nordeste e tornamos a música mais dançável... (3). Segundo Luiz Gonzaga:”...o baião foi estilizado para tornar-se música comercial.Aproveitamos os temas folclóricos, com letra nova e melodia estilizada...”(4).
Surgia, assim, em 1945, o baião moderno e urbanizado, com uma nova roupagem, onde os instrumentos originais (viola, pandeiro, botijão e rabeca) foram substituídos por zabumba, triângulo e sanfona.Com isso, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira promoveram uma verdadeira revolução na música brasileira, até então dividida entre o samba-canção e outros ritmos importados.
No ano de 1946, os “Os Quatro Ases e Um Coringa” gravaram a primeira composição pelo próprio Luiz Gonzaga, tempos depois.
Os primeiros frutos da parceria de Humberto com Luiz Gonzaga logo se transformaram em verdadeiros sucessos nacionais, o que possibilitou ao baião firmar-se como um novo e autêntico estilo de música, além de garantir a Luiz Gonzaga o título definitivo de “Rei do Baião”.No período de 1946 a 1950 o baião dominou 80% das execuções musicais no Brasil, o que refletia a grande aceitação tida pelas obras de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga.
Esse fenômeno, até então inédito na indústria fonográfica brasileira, fez com que as prensas da RCA trabalhassem quase exclusivamente para Luiz Gonzaga.
A primeira música da dupla a ser gravada por Luiz Gonzaga foi o xote No Meu Pé-de-Serra, em 1946. Depois vieram outros clássicos da música nordestina: Asa Branca, Paraíba, Baião, Lorota Boa, Mangaratiba, Baião de Dois, Juazeiro, Légua Tirana, Macapá, Xanduzinha, Qui Nem Jiló, Estrada de Canindé, Assum Preto e Respeita Januário.
Apesar do brilhantismo dos primeiros anos, a parceria de Humberto Teixeira com Luiz Gonzaga se desfez por volta de 1952, quando já estava em pleno vigor a parceria de Gonzaga com o poeta pernambucano Zé Dantas.Porém o que Humberto havia composto no período em que esteve com Luiz Gonzaga já era o suficiente para assegurar-lhe a posteridade.
Em 1954, Humberto elegeu-se deputado federal pelo Ceará, apoiado pelo líder paulista Adhemar de Barros, com cerca de 12.000 votos. Como deputado, ele teve destacada atuação no campo do direito autoral. Conseguiu a aprovação da lei “Humberto Teixeira”, o que permitiu uma maior divulgação da música brasileira no exterior, através de caravanas musicais subsidiadas pelo governo federal.
O baião entra em crise
Após ter dominado o mercado brasileiro por quase 10 anos, o baião, a partir de 1956, começou a dar sinais de visível declínio, tendo progressivamente cedido o seu espaço para o movimento da Bossa-Nova e os acordes da guitarra.
Durante um período de aproximadamente 15 anos (1956-1971), o baião esteve marginalizado e esquecido nas grandes cidades onde, um dia, reinou. Com isso, teve que retornar à sua terra de origem, refugiando-se no Nordeste.Assim como o baião, os seus criadores também foram condenados ao ostracismo.
No que pese o grande talento de Luiz Gonzaga, não podemos negar que a obra de Humberto Teixeira foi de uma importância inconteste na volta do baião e de seus congêneres e, conseqüentemente, na volta de seu maior intérprete maior.
Na verdade, o baião começou o seu caminho de volta em 1965, com a gravação do imortal hino nordestino Asa Branca (Humberto Teixeira/Luiz Gonzaga) por Geraldo Vandré, em seu LP “Hora de Lutar”. Três anos depois, em 1968, surgiu a notícia, não-confirmada, de que os Beatles iriam gravar Asa Branca.Embora isto não tenha se efetivado, foi, sem dúvida, mais um passo para o retorno de Luiz Gonzaga.
Em 1969, Gilberto Gil incluiu em seu LP o baião 17 Légua e Meia (Humberto Teixeira/Carlos Barroso), um antigo sucesso na voz de Luiz Gonzaga.Neste mesmo ano, Gonzaga lançava mais um disco, onde o parceiro dos anos 40, Humberto Teixeira, se fazia presente através de duas novas composições: Canaã e Baião Polinário.
Dois anos depois, em 1971, quando do seu exílio em Londres, Caetano Veloso deu uma nova interpretação a Asa Branca. Mais uma vez a Asa Branca promovia a volta do baião.Ainda em 1971, Gal Costa gravou Assum Preto (Humberto Teixeira/Luiz Gonzaga), outro grande sucesso da dobradinha.Com isso, abria-se definitivamente o caminho que traria o baião e seus criadores de volta ao cenário da música brasileira.
A grande volta
Para assinalar a sua volta, foi lançado em 1971 o LP “O Canto Jovem de Luiz Gonzaga”, onde ele canta músicas de Gil, Caetano, Geraldo Vandré, Tom Jobim e Humberto Teixeira, com quem lançou o baião nos anos 40.A música Bicho, Eu Vou Voltar, que conta com a participação de seu autor, Humberto Teixeira, fala exatamente deste momento histórico para os criadores do gênero (“Bicho com todo respeito/Dá licença eu vou voltar/Oh desafio pai d’égua/pra cabra macho enfrentar...”) e da enorme gratidão para com aqueles que, de alguma forma, promoveram esta volta (“Caetano muito obrigado/por me fazer lembrar/não a mim, mas a tudo que eu fiz...”).
Nesta nova fase do baião, Humberto Teixeira ainda compôs algumas músicas para o amigo Luiz Gonzaga: Ana Rosa (1972); Marilu (1972); Baião de São Sebastião (1973); Saudade Dói (1976); Chá Cutuba (1977); Menestrel do Sol (1977); Salmo dos Aflitos (1978); Dengo Maior (1978) e Orélia (1979).
No seu disco de 1979, Gil nos trouxe uma nova versão de Macapá (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira) lançada com sucesso pela cantora Mariene, em 1949.
Em 3 de outubro de 1979, aos 63 anos, em sua casa no bairro de São Conrado, no Rio de Janeiro, morria o grande compositor e poeta Humberto Teixeira.
Após a sua morte, duas músicas ainda foram gravadas: Dança do Capilé (1982) e Xengo (1983).
Autor de mais de 400 composições gravadas (5), Humberto Teixeira compôs Kalu, para Dalva de Oliveira, e, em parceria com Sivuca, fez Adeus Maria Fulô, para Carmélia Alves. Uma de suas músicas foi gravada por Elba Ramalho no início de sua carreira (Bodocongó). Outros também gravaram músicas do poeta de Iguatu, a exemplo de Caetano Veloso, que gravou Kalu, e de Fagner, que faz uma homenagem ao poeta conterrâneo ao cantar Dono dos Teus Olhos.
Nos últimos anos de sua vida, Humberto refugiou-se em casa, num isolamento voluntário.Poucas pessoas passaram a ter acesso a ele.Só compunha para consumo próprio ou sob fogo cerrado do parceiro e amigo Luiz Gonzaga. Assistiu à distância a nova invasão do Sul pela música nordestina, quando muitos cantores da nova safra seguiam as suas pegadas.
Os nomes de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga estão íntima e irreversivelmente ligados na história do baião e da música brasileira, como um todo. Através de suas canções, o Brasil passou a conhecer Asa Branca, que, em seu vôo derradeiro, foge tangida pela seca, tal qual o retirante nordestino; o Assum Preto, que, cego dos olhos para cantar melhor, vive solto sem poder voar; a receita para um gostoso Baião de Dois; a disposição que tem o nortista, capaz de andar, sem parar, 17 Légua e Meia para ir num forró dançar e, ainda, como se dança o Baião.
Advogado, político, instrumentista, poeta e compositor. Esse é o perfil de Humberto Teixeira, um sertanejo cearense que, em um dia de agosto de 1945, uniu-se a Luiz Gonzaga para lançar o baião. Embora não seja o rei, Humberto Teixeira é, sem dúvida, um dos donos desse reinado chamado baião.
A sua morte, no ano de 1979, constituiu-se na perda de um dos maiores compositores da música brasileira. Com ela, ficaram órfãos a Asa Branca, o Assum Preto e o próprio Baião.
Marcos Barreto de Melo
Referências Biográficas
(1) SÁ, Sinval, in “O Sanfoneiro do Riacho da Brigada”, 5ª edição, Editora Thesaurus.Brasília, 1978.
(2) Declarações feitas por Luiz Gonzaga ao autor deste artigo em 11/08/84, no Parque Asa Branca, em Exu-PE.
(3) Veja (revista semanal brasileira), São Paulo nº 01,11/09/68, Págs. 110/111.
(4) Veja (revista semanal brasileira), São Paulo nº 74,04/02/70, Pág. 5.
(5) Veja (revista semanal brasileira), São Paulo nº 579,10/10/79, Pág. 110.