Leda Alves
Em uma vida de quase 80 anos, Leda Alves dedicou boa parte às artes cênicas, à valorização da cultura popular e às lutas políticas pela democratização do País, pela liberdade de expressão, entre outras atividades que permanecem presentes até hoje no seu cotidiano. Desde o início, no Teatro Popular do Nordeste (TPN), no Teatro de Arena junto com o marido Hermilo Borba Filho, já falecido, até hoje, vem ocupando cargos importantes, como na Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), na presidência da Fundação de Cultura Cidade do Recife, no Teatro de Santa Isabel e atualmente como presidente da Editora CEPE. Em conversa com o repórter Anax Botelho, Leda, como prefere ser chamada, fala um pouco da sua história, da cultura e de como até hoje encara todos os desafios para que a arte e seus pensamentos políticos permaneçam.
O que os anos 1960 representaram, com o Teatro Popular do Nordeste, e o Teatro de Arena, na realidade política do País?
Do ponto de vista político, foram anos difíceis, mas profícuos. A vida do Teatro de Arena foi curta e sem maiores compromissos políticos. Mas aconteceram coisas importantes, como o Quinteto Violado, Naná Vasconcelos, e foi também importante para mim, porque estreei como atriz, em uma peça de Augusto Boal dirigida por Hermilo Borba Filho. Eu acho que o Teatro Popular do Nordeste (TPN) sim, marcou mesmo uma época e desempenhou um papel não só artístico e cultural importante, mas político, fazendo dali uma trincheira de resistência à ditadura. Isso acontecia desde a escolha do repertório até o processo que Hermilo utilizava para desenvolver e preparar um espetáculo. Os livros que ele nos induzia a ler, as discussões e ações nos sindicatos... Era tudo planejado e com o objetivo de reforçar a luta do povo brasileiro naquele momento. E o TPN aliava-se a isso com o alto nível dos seus espetáculos, assegurado pela presença, direção e grande influência de Hermilo liderando não apenas um grupo de teatro, mas uma escola de vida. Lia-se, discutia-se sobre filosofia, sobre as expressões dos nossos teatros populares, como bumba meu boi, mamulengo, frequentando os terreiros, aprendendo com os atores populares... Aprendendo a entender a técnica que Hermilo usava. Era uma coisa muito nova no Brasil, e hoje, graças a Deus, nós vemos tudo isso se perpetuar, como em vários institutos de teatro, como o Galpão (Minas Gerais), em extraordinárias montagens, e com muitos outros grupos. Aqui, no teatro que Carlos Carvalho criou, foram adaptados e encenados vários textos de Hermilo e contos. E há muitos outros grupos que se inspiram no nosso caminho, com um tratamento cênico mais requintado, com outros recursos, claro, mas bebendo dos atores populares o espírito, o método e a técnica... Envolvendo o espetáculo com muita música, muita dança e o texto da música comentando e criticando o que está acontecendo.
Dentre todos os acontecimentos, qual foi o mais marcante?
O TPN mudou a vida de todos que passaram por lá e pagamos um preço por isso. Não tínhamos apoio de nenhum órgão público. Não nos interessávamos pela cultura do Brasil oficial, que não nos deixava por dentro dos fatos. E em relação ao grupo, havia toda uma publicidade e a criação de uma opinião pública sobre nós, que incutia no público o medo do TPN, o medo de bombas lá, etc. Diziam que lá era uma célula do partido comunista, que a droga andava solta. Isso para a burguesia era um espanto muito grande. Enfrentamos muita dificuldade, até na esfera profissional mesmo, o ensaio, por exemplo, era pago. A bilheteria não estava funcionando mais, o público fugindo... Nós não tínhamos mais acesso aos estudantes para ir aos Sindicatos, aos Diretórios Centrais dos Estudantes (DCEs), não podia haver qualquer reunião. Também hostilizamos como, por exemplo, fazendo o enterro do Padre Henrique... A gente preparou muita coisa lá no TPN. Não havia uma célula do partido comunista, mas nós debatíamos cada coisa que acontecia no Brasil antes de começar o espetáculo. Antes de começar o espetáculo, o ator que quisesse ia lá para frente e denunciava o que estava acontecendo... Nesse período, também houve a cirurgia de coração de Hermilo, quando os médicos disseram que ele precisava reduzir o expediente. Entre escrever, estudar e dar aula, o expediente que mais o desgastava era dirigir espetáculos.
Como você lidou com sua família, com o tradicionalismo tão comum à época em relação ao teatro?
O alto nível do TPN também encantava a burguesia. Mas o teatro foi cercado duas vezes para uma batida policial em todo mundo... Naquela época era a mesma coisa que matar. Essa parte foi o que espantou mesmo a população. Eu como toda pessoa jovem naquele tempo, eu já tinha comprometimento político com a Igreja, já era madura com 25 anos. Não tinha comprometimento partidário, mas com Hermilo e vivendo nas comunidades eclesiásticas de base e também com o teatro popular eu já estava totalmente engajada. O TPN assumiu o papel da escola radiofônica para alfabetização de camponeses pela CNBB. Hermilo e outro autor escreviam dentro do tema que queriam e criavam o radioteatro e aí o TPN interpretava. Eu já incomodava meus pais, com a luta de igrejas, vivia nas comunidades, recebia pessoas em casa... Nunca fui rica, mas meus pais, quando resolvi fazer teatro, faziam questão de dizer que era por amor a arte. Mas eu dizia que queria fazer da arte minha profissão. Meu pai me incentivou desde pequena a ler poesia, nas escolas eu lia os discursos... Vendo esse meu interesse, acho que ele pensou: “eu não tenho o direito de impedir”. Quando os papéis eram mais quentes, eu não trazia nenhum conflito dentro de mim, mas pensava em relação aos meus pais: “como eles vão ver a cena em que estou sentada no colo de uma pessoa?” Não era fácil para eles. Em a A farsa da boa preguiça, de Ariano Suassuna, na primeira versão no Teatro de Arena eu interpretei uma personagem que usava palavras insinuantes, com gestos carregados de várias intenções. Houve uma reação burguesa, mas eu sempre criei o meu caminho e enfrentei. Quando veio a ditadura militar, eles ficaram com medo, mas depois meus pais viram que era trabalho mesmo, que eu ganhava dinheiro e que aquela era a minha profissão.
Hoje você sente saudades do teatro? Como foi o início de tudo?
As coisas não foram premeditadamente interrompidas e criadas, da mesma maneira como fui conduzida e preparada para fazer o vestibular para teatro. Com exceção do teatro-paróquia, no Espinheiro. Era muito forte, toda igreja tinha teatro. Eu participei em Casa Amarela, em Casa Forte e no Espinheiro, eu fazia parte do grupo...
A Igreja abriu meus caminhos. Eu fui para as comunidades, para os trabalhos com o povo... Fiz faculdade de Teatro, onde encontrei Hermilo, e foi fatal. Comecei a ver como as coisas se juntavam... Como as pastorais, das quais eu fazia parte, de educação popular e ação social funcionavam... E como a gente tinha vontade que as organizações populares tivessem vez! E o Teatro Popular era uma organização popular. Como o carnaval também é uma organização, uma das mais importantes para a formação de uma comunidade. Então fui me aproximando, o curso foi me dando uma visão muito ampla, mas sem me afastar da igreja.
Ao lado disso, a situação política se agravou. Nós entramos na luta para valer, minha igreja gritou para o mundo, pela voz de homens como Dom Helder Camara. Nós já estávamos fundidos a isso tudo... Eu desempenhando minha função de cristã, militante política sem nenhuma ligação partidária. E o teatro era um elemento de serviço em favor dessa luta. Não havia nenhum conflito dentro de mim.
Como ocorreram as mudanças na vida?
Ocorreu muito problema como a politicagem, a falta de dinheiro e por fim a doença de Hermilo, nós já estávamos casados... Ele adoeceu e reduziu a carga de trabalho, mas continuamos com as mesmas frentes de luta. Apenas quando ele morreu, foi que olhei e pensei: “qual o caminho que devo seguir?” O TPN tinha fechado, a vida que eu vivia como atriz, mulher e militante política no TPN me davam plenitude muito grande, com todo o telhado que era viver com Hermilo. Mas com o TPN fechado, esse espaço não podia fazer. Comecei a fazer assessoria aos grupos daqui. Mas a técnica que eles usavam era muito diferente da que eu usava, eu não tinha vontade de fazer aquele teatro, não querendo ser melhor, mas é saber se dou ou não dou. Já tinha sido formada, exercitada, capacitada... Ao mesmo tempo as coisas se agravaram politicamente.
As armas estavam nas mãos dele (Hermilo), como profissional, como escritor. E eu era como se fosse a contrarregra dele. Eu fazia as coisas que o desgastavam, para que ele tivesse condições, com as obras, assessoramento dele, que ele prestava... Ele pudesse prestar um serviço maior do que eu. Eu trabalhava na retaguarda mesmo. No teatro, eu já fiz muito papel principal, mas na vida ele sempre ficou com o papel da frente e eu na retaguarda. E fui aos poucos entendendo que era por aí.
Isso se identificou com você e a levou para os trabalhos na gestão pública?
Em certa altura da minha vida, fui me encaminhando para a gestão pública. Era decorrência do meu trabalho profissional. E então eu também vi como era importante um gestor público ter consciência e conhecimento da cultura popular. Eu costumo dizer que sou uma servidora pública. Assumo todas as funções que me são entregues e assumo para servir.
Dirigi o prédio do Teatro de Santa Isabel por oito anos. E para mim foi muito prazeroso, gratificante mesmo, porque eu gosto do cheiro daquele teatro, dos bequinhos lá de dentro. Um dia me perguntaram se eu tinha vontade de trabalhar, e eu disse “eu já não preparo o palco para vocês?” Era um prazer muito grande ver que tudo lá estava perfeitamente correto para se trabalhar. Quando o espetáculo se acende e eu o via acontecer... Oferecer aos artistas e ao público a excelência do teatro é algo muito prazeroso. Estou servindo.
A CEPE é uma casa nova para mim. Quando vi, eu estava em um casamento indissolúvel com o Teatro de Santa Isabel. Cheguei à CEPE e fui apresentada ao pessoal e pensando: “começar tudo de novo?” Mas eu tinha uma ligação com a missão política no Estado. Aí já fui instalando uma porção de coisas. Ajuda aos grupos de cultura popular, apoio ao sistema de editoração de livros que reforce a luta, o trabalho com grupos pequenos, com funcionários, com a programação artística daqui, dando vez aos da nossa terra e até escolhendo o som que toca no prédio. Aí fui vendo a CEPE como uma editora e não apenas como uma gráfica. A vida põe você em um canto, e aí você descobre que pode, dali, surgir uma rosa, podem surgir espinhos, pode surgir uma frutinha gostosa, pode surgir um formigueiro e acabar.
por Agenda Cultural do Recife