Sabereis que um emigrante não deverá bendizer o destino. Em seu genético canteiro deserdado, orfão da pátria, viúvo da sorte, vai um homem mundo fora na aventura de côdea menos dorida. A outra, não menor e invisível oculta dor da saudade, cravou-se-lhe na alma e será sua indefectível companheira, até ao dia em que haverá (?) de regressar ao canteiro da aldeia ou vilória onde vagueiam as capitais memórias do imorredouro tempo de infância.
Ao certo, ninguém sabe porque pactua um homem tão irmamente com a terra de onde brotou para o mundo. Dizem alguns, ser da língua, outros do modo de ser de um povo, outros ainda, do sol, das romarias, dos cafés, dos adros das igrejas, do rosto dos velhos, das tabernas, do cheiro a tomilho, da rama de pinheiro, do alecrim, da maresia, finalmente, e porventura, a mais certeira: porque os olhos se afeiçoaram ao mundo primeiro na alma esculpido.
Sei, no cerne do espírito, que Portugal me faz uma falta danada, costumo até dizer entre gracejo e dor--mais dor que gracejo--que tenho na alma uma brecha do tamanho de Portugal. Também ouvi dizer a senhor muitíssimo letrado, peregrinante pelo mundo, que isto de emigrar é como perder um membro: cicatriza a chaga, mas a ausência, estará para sempre presente.
Um expatriado nunca imaginaria que, trocar promessas de farto pé de meia, pelo espinho da saudade, seria dilacerante negócio. Alma inominada--não se diz ter sido a terra e os personagens de infância que filiaram o ser? De si apartado, vai um emigrante em busca de aventura tornada pão, e a vida consuma-se num silente gemicar de saudade, nesta apátrida exclusão tecida.
Um país, são fragâncias de mar, rosmaninho, alecrim, foguetes, fontes, vermelhos-telha, vielas, sonância de uma língua que dedilha as cordas da alma, solenes cantigas de um povo, rostos--sobretudo rostos--que povoaram a infância e nela permanecem especados e são os inamovíveis marcos do tempo em que, sem o sabermos, sabêmo-lo agora, eramos felizes na inocência.
A maior condenação de um emigrante é viver de si próprio ausente, porque, tatuada de recordações, a alma anseia retornar aos locais onde repousa o arquivo das memórias-chave num tempo em que os olhos de tudo se enamoravam.
Um homem, desemparado do seu passado, é um ser irremediavelmente solitário, navegante sem história, nem referências viventes, a braços com um mundo estranho diluindo fonemas mal arremedados, porque a história de uma vida construiu-se na própria história de um país, acompanhada das ruelas, dos peculiares olfactos, da ressonância da língua, que é tão melódica como a alegria refulgida na alma, com que aprendi os primeiros ditongos e, embevecidos, desenhava com aparo e tinta as primeiras letras.
Ora, sabemos de fonte pura, que os angustiados não se quotizam em clubes, para minguar seus padecimentos pátrios, porque a angústia quer-se só, e os magoados, detestam convívio.
E de um ser dorido, sem a glória do triunfo no seu país, emudecido no silêncio apátrida, semeado pelas arestas do mundo emigrado que vos falo.
Li algures, não sei onde, sei que por verídica se me alojou na alma esta sentença: " quem da pátria se aparta de si se aparta".
Um homem não faz o mundo, mas conserva intacta e fiel no bojo da alma, a terra onde nele foi talhado para a vida.
Firmadas as cruciais memórias do outro lado do mar, de si ausente, finam-se os dias e o destino incumprido de português lá vai coabitando com fonemas arremedados. A vida cumpre-se em sobrevivência. E assim: sabemos que estamos vivos mas não vivemos.
Poucos actos se assemelham em tristeza à solidão do emigrante. Um homem leva um país no cerne da alma, mil memórias à terra grudada no canteirinho genesíaco. Para contrapor à penúria espiritual da sua exclusão pátria: mesa recheada e duas patacas para a incerteza da inglória velhice.
Tempos houve, em que os dias emigrados não detinham resquícios de memória, de forma que me afligia com o consumir das horas sem outras reminescências, para além de testemunhar apavorado a roda do tempo.
Arquivei da vida a fisiologia dos dias. Se alguma vezes me lamúrio deste pão de exílio, digerido com avantajadas fatias de saudade, logo me retruquem que não blasfeme, tenho o pãozinho sobre a mesa, que mais pretendo eu?
Fiquei a saber um dia, que ao emigrante não lhe é consentido edificar sonhos, prolongados além dos alicerces do pão. Que a fartura de côdea com miolo nunca emigraram meu caro. Um país nunca exporta a sua burgesia. Por mais engulhos que te cause vai digerindo de mansinho. Com os ouvidos limpidos e desempoeirados, escuta: emigrar é fatal e dolorosamente uma aventura em trapos tecida.
Dizia-me um dos raros sábios, por este portugalinho emigrandado, que por aqui outra espiritualidade se não conhece que não seja a materializacão do espírito que consiste em acumular para justificar esta ausência de nós, ou seja suprir o espírito do enlevo da matéria. Vive-se por aqui, hipotecado ao futuro, porque o presente circunscreve-se em torno do sonho do regresso.
Regozijaria ao ver redimida esta materialização absoluta. Alguns curas que por aqui demandaram em busca da alma do cifrão, possessos da valia centuplicante do dólar, iniciaram o processo de santificação da vil pataca. De uma madre Teresa, de um filantrópo ou mecenas por aqui arribado, para minorar os padecimentos desta gente a esbracejar, perdida numa lingua crivada de arestas e hábitos libertinos que anatematizam os sacrossantos valores da aldeola ou vilória onde se talhou a mente, não há sequer indícios.
Toda a poesia por aqui existente, bebe a sua despudorada lirica dos tentáculos do cifrão. Ou muito me engano, ou grande parte dos destronados da pátria perdeu a nobre virtude da compaixão e não se vislubram os mínimos vestígios de solidariedade.
Sobreviva sem padecer, aconselhava-me um dos desventurados pátrios, e será um herói. Esqueça-se de si, pense simplesmente no futuro dos seus filhos, que o futuro deles seja canadiano ou francês pouco inporta, importa que sejam homens que não tenham de ficar eternamente divididos como eu e o meu amigo.
Rendi-me, mas logo a alma me ficou anuviada, quando pensei que o meu elo de portugalidade era ali mesmo truncado. É assim uma morte dupla, esta de sabermos que as nossas raízes não se perpetuam na fidelidade da terra que as talhou.
Quando procurava no tempo uma explicação para trinta anos de vida esvaída no calvário emigratório, os dias eram de aflição, onde colocara eu esta grossa fatia da vida?
Sabia que existira, mas não conservava memória do tempos, para além da familia, portugueses e canadianos, que vão tentando reconcilar, nem sempre pacificamente, os valores lusitanos com as algumas incongruências canadianas. Duplamente negado no silêncio amargo dum viver arremedado, sou este ser desventrado do espírito das coisas e pessoas que moldaram o meu olhar para o mundo.
Estrangeirado lá, no meu querido portugalório, estrangeiro aqui, assim vou interpetrando a (sobre)vivência destes dias sem história, nesta heróica exclusão em que marginalmente vivo.
Por um naco de pão menos torturado (será?) a amargura de ser infiel ao próprio viver, ao desígnio da minha portugalidade.
Emigrar. Tempo parado no exacto dia em que demandei o promissor reino da pataca.Fonemas mal arremedados, gente que não compreende o alecrim, nem o cheiro a jarro, nem os foguetes, nem as colchas, debroadas a esmero, pendentes das janelas que vibram de santificação em dia de festa.
Quando a ressureição consistia no regresso, ainda havia uns fios de crença, agora que o pão me condenou perpetuamente a alimentar-me de estranhas espigas, por dívida para com os meus filhos, reconheço que nunca tive o beneplácito dos deuses.
Sou este ser deambulante pelo mundo, recheado de sonhos de pão farto e regresso, sem outra esperança que não sejam os próprios braços, mais a solidão emigratória de nunca pertencer. Nao me venham pois falar de sorte que vos esconjuro. Ai, António, que é feito da tua fé?
Oh, ruelas tortuosas e empedradas na minha história. Oh, rostos que povoaram o mundo da infância, como vos sinto a sufocante lonjura. Emigrar. Consciência dorida de não ser parte. Exclusão dolorosa do próprio viver. Uma língua, uma cultura, mil jeitos de ser, permanecerão tatuados na alma emigrada. Para sempre.
Por uma côdea, um exílio dourado que nenhum sonho, por mais aurífera, redimirá.Na alma um passado cerceado. O presente é um acto de mera sobrevivência. Com mais farturinha, é certo. Ora uma codêa a nortear toda uma vida... Oh, tamanha desventura subjugada a um destino no pão alheio traçado.
Sou homem de vida enleada nas teias da saudade. Nunca o malfadado pão deste exilado viver, deveria ter o inefável custo desta vivência.
Emigrante, vivente, de mim estranho, aguardando reencontro com o pé de meia a prometer velhice farta. Portugalidade incumprida. Ninguém mais carente de sonho, da ilusão, de esperança para sobreviver que eu senhor de duas pátrias, sem mundo.
Transpor fronteiras, galgar oceanos, pelo sonho que redunda em exclusão. Navego no bojo de alheia terra, tendo por bússola o sempre adiado regresso. Renunciei à autenticidade de um viver português que me fora destinado. Um destino pátrio não se finta, incólume, porque é condição humana ser-se fiel à língua a à terra que moldaram o ser para o mundo. No dia em que emigrei, deixei de celebrar a vida, e aprisionei-me nas malhas, pelos meus filhos tecidas, na prometida terra da abundância.
Agora, eles são canadianos puros. Enquanto eu viver, manter-lhes-ei, a memória gastronómica da pátria, com rojões, sopa de feijão, morcela e torresmos. Eu, com fidelidade absoluta, olho-me, sinto-me e penso-me, irremediável e dolorosamente português. Português amargo, para o resto de meus dias.