O que esperar de um jornalista? Que ele seja antes de tudo um vocacionado. Uma pessoa que abrace a profissão com isenção e vista-se com ela durante todos os segundos de sua vida. Um tipo que esteja antenado com a dinâmica da política e da vida em sociedade, da qual ele, além de testemunha, é um importante ator. Espera-se dele também honestidade na informação, muita vivacidade, clareza de redação e contínua atualização com a "Aldeia Global" na qual todos nós habitamos.
Pois não é que contrariando essas expectativas, há exceções? Aqueles que são tremendamente distraídos, que vivem no mundo da lua, mas tão bem escondidos, que parecem estar na face mais oculta do nosso satélite.
Havia no Rio de Janeiro dos últimos anos do Século XX, um jornalista tão distraído, cujas "voadas" faziam a alegria de todos os seus colegas de trabalho. Era mais conhecido pelo apelido de "Habi Sorto", nome fictício para o qual são dispensadas as necessárias justificativas. Não era por racismo, mas por puro hábito, que ele batizava qualquer interlocutor que não possuísse a pele totalmente branca pelo nome de "Moreno", apelido distribuído aos milhares de conhecidos dele ou não.
Em certa tarde de um final de ano, "Habi Sorto" foi convidado para uma recepção que o poderoso dono da Rede Globo ofereceria à sociedade carioca em sua mansão do Cosme Velho. "Habi Sorto" passeou por todas as seções do jornal onde trabalhava, visitou cada um dos birôs de seus colegas, exibindo orgulhosamente o convite, mesmo sem lhe passar pela cabeça que seus colegas haviam sidos distinguidos com idêntica honraria.
No dia marcado, "Habi Sorto" foi gentilmente recebido no portão de entrada da mansão por um senhor distinto, de tez levemente morena, vestido rigorosamente com uma casaca branca, calça escura e gravata borboleta. Ao cumprimentar os convidados, acompanhou o jornalista até a uma mesa reservada para imprensa, colocada nos jardins, à margem da passarela de entrada, na qual já se encontravam alguns colegas de "Habi Sorto". Este não perdeu tempo e logo ordenou ao acompanhante:
- Oh Moreno, traga um whisky e um salgado! - Em poucos minutos, o cidadão de casaca branca apareceu com uma bandeja numa mão, e uma garrafa de whisky "royal salute" na outra, tendo servido ao grupo de jornalistas que acompanhava "Habi Sorto".
À certa altura, notou-se uma grande movimentação nos jardins, com as pessoas se dirigindo para a entrada, pois anunciara-se a chegada do embaixador americano. "Habi Sorto" e os colegas foram assistir. O embaixador ao descer do carro abraçou calorosamente o anfitrião. E então, o jornalista "Habi Sorto" comentou com os colegas.
- Esse garçon, o Moreno, só quer ser o cão! Nunca vi sujeito mais metido! Pois não é que o bicho é conhecido até pelo embaixador americano?
- Esse Moreno, que você acha que é um garçon e, que ficou muito seu amigo a ponto de atender pessoalmente seus pedidos é o dono da casa, o Dr. Roberto Marinho, seu patrão! - Completaram seus colegas.
O nosso herói, o jornalista "Habi Sorto", campeão mundial de mancadas, murchou, procurou no chão algum buraco onde pudesse se enterrar e nada encontrou, somente grama. Pediu licença para ir ao banheiro e sumiu de vez!
Mais de vinte anos depois, "Habi Sorto" foi na visto no Estádio Olímpico de Porto Alegre, no meio da torcida do Grêmio, gritando o nome "Moreno!" para o goleiro do time adversário. Livrou-se de um processo por racismo graças a uma jovem, alguns degraus à sua frente, que pronunciava ofensas racistas bem mais graves.
Por Carlos Eduardo Esmeraldo
NOTA DO AUTOR: Texto inspirado numa história que me foi contada pelo meu primo e amigo, o jornalista José Esmeraldo Gonçalves, para lembrar aos amigos que muitas vezes eu tenho meus momentos de "Habi Sorto".
Posteriormente a história que me foi narrada oralmente constou do livro: "Aconteceu na Manchete: as histórias que ninguém contou". Organização de Jose Esmeraldo Gonçalves e J. A. Barros, Rio de Janeiro, Desiderata, 2009; página 108. gentilmente cedido pelo autor.
Abaixo, o texto original de autoria de José Esmeraldo Gonçalves, que se encontra no livro "Aconteceu na Manchete: as histórias que ninguém contou."
Me vê um uísque aí, moreno! -
Flávio Aquino, grande figura e crítico de arte da Manchete, era, diga-se, desligado. E bota desligado nisso. Ele mesmo contava uma historinha deliciosa. O poderoso Roberto Marinho convidou embaixadores e adidos culturais para uma recepção na sua mansão do Cosme Velho. Entre outros intelectuais, estava na lista o nosso Flávio. Ao chegar à mansão, ele logo tratou de pedir um uísque duplo ao primeiro "garçon" que encontrou. "Moreno, me vê uma dose com duas pedras de gelo, faz favor", decretou, dirigindo-se ao sorridente senhor de "summer" impecável e pele queimada do sol. Solicito, o "garçon" se mandou e logo retornou com o pedido prontamente cumprido. Flávio agradeceu e foi circular, de copo na mão, pelos salões da mansão. Papeando com amigos, não pôde deixar de notar que o "garçon" que o atendera era festejadíssimo pelos demais convivas. Embaixadores o abraçavam, jornalistas o paparicavam, enfim, o homem era a "alma" da festa. Antes de pedir mais uma dose de uisque, Flávio olhou melhor para a cara do sujeito e .... caiu-lhe a ficha. O "garçon" de branco e gravatinha borboleta era ninguém menos do que o anfitrião. O próprio Roberto Marinho. Flávio se mandou da festa sem se despedir do "Moreno".
Por José Esmeraldo Gonçalves
Nota: Flávio Aquino era dono de uma vasta cultura. Foi arquiteto, jornalista e crítico de arte. Faleceu aos 67 anos, em 19 de janeiro de 1987.
Pois não é que contrariando essas expectativas, há exceções? Aqueles que são tremendamente distraídos, que vivem no mundo da lua, mas tão bem escondidos, que parecem estar na face mais oculta do nosso satélite.
Havia no Rio de Janeiro dos últimos anos do Século XX, um jornalista tão distraído, cujas "voadas" faziam a alegria de todos os seus colegas de trabalho. Era mais conhecido pelo apelido de "Habi Sorto", nome fictício para o qual são dispensadas as necessárias justificativas. Não era por racismo, mas por puro hábito, que ele batizava qualquer interlocutor que não possuísse a pele totalmente branca pelo nome de "Moreno", apelido distribuído aos milhares de conhecidos dele ou não.
Em certa tarde de um final de ano, "Habi Sorto" foi convidado para uma recepção que o poderoso dono da Rede Globo ofereceria à sociedade carioca em sua mansão do Cosme Velho. "Habi Sorto" passeou por todas as seções do jornal onde trabalhava, visitou cada um dos birôs de seus colegas, exibindo orgulhosamente o convite, mesmo sem lhe passar pela cabeça que seus colegas haviam sidos distinguidos com idêntica honraria.
No dia marcado, "Habi Sorto" foi gentilmente recebido no portão de entrada da mansão por um senhor distinto, de tez levemente morena, vestido rigorosamente com uma casaca branca, calça escura e gravata borboleta. Ao cumprimentar os convidados, acompanhou o jornalista até a uma mesa reservada para imprensa, colocada nos jardins, à margem da passarela de entrada, na qual já se encontravam alguns colegas de "Habi Sorto". Este não perdeu tempo e logo ordenou ao acompanhante:
- Oh Moreno, traga um whisky e um salgado! - Em poucos minutos, o cidadão de casaca branca apareceu com uma bandeja numa mão, e uma garrafa de whisky "royal salute" na outra, tendo servido ao grupo de jornalistas que acompanhava "Habi Sorto".
À certa altura, notou-se uma grande movimentação nos jardins, com as pessoas se dirigindo para a entrada, pois anunciara-se a chegada do embaixador americano. "Habi Sorto" e os colegas foram assistir. O embaixador ao descer do carro abraçou calorosamente o anfitrião. E então, o jornalista "Habi Sorto" comentou com os colegas.
- Esse garçon, o Moreno, só quer ser o cão! Nunca vi sujeito mais metido! Pois não é que o bicho é conhecido até pelo embaixador americano?
- Esse Moreno, que você acha que é um garçon e, que ficou muito seu amigo a ponto de atender pessoalmente seus pedidos é o dono da casa, o Dr. Roberto Marinho, seu patrão! - Completaram seus colegas.
O nosso herói, o jornalista "Habi Sorto", campeão mundial de mancadas, murchou, procurou no chão algum buraco onde pudesse se enterrar e nada encontrou, somente grama. Pediu licença para ir ao banheiro e sumiu de vez!
Mais de vinte anos depois, "Habi Sorto" foi na visto no Estádio Olímpico de Porto Alegre, no meio da torcida do Grêmio, gritando o nome "Moreno!" para o goleiro do time adversário. Livrou-se de um processo por racismo graças a uma jovem, alguns degraus à sua frente, que pronunciava ofensas racistas bem mais graves.
Por Carlos Eduardo Esmeraldo
NOTA DO AUTOR: Texto inspirado numa história que me foi contada pelo meu primo e amigo, o jornalista José Esmeraldo Gonçalves, para lembrar aos amigos que muitas vezes eu tenho meus momentos de "Habi Sorto".
Posteriormente a história que me foi narrada oralmente constou do livro: "Aconteceu na Manchete: as histórias que ninguém contou". Organização de Jose Esmeraldo Gonçalves e J. A. Barros, Rio de Janeiro, Desiderata, 2009; página 108. gentilmente cedido pelo autor.
Abaixo, o texto original de autoria de José Esmeraldo Gonçalves, que se encontra no livro "Aconteceu na Manchete: as histórias que ninguém contou."
Me vê um uísque aí, moreno! -
Flávio Aquino, grande figura e crítico de arte da Manchete, era, diga-se, desligado. E bota desligado nisso. Ele mesmo contava uma historinha deliciosa. O poderoso Roberto Marinho convidou embaixadores e adidos culturais para uma recepção na sua mansão do Cosme Velho. Entre outros intelectuais, estava na lista o nosso Flávio. Ao chegar à mansão, ele logo tratou de pedir um uísque duplo ao primeiro "garçon" que encontrou. "Moreno, me vê uma dose com duas pedras de gelo, faz favor", decretou, dirigindo-se ao sorridente senhor de "summer" impecável e pele queimada do sol. Solicito, o "garçon" se mandou e logo retornou com o pedido prontamente cumprido. Flávio agradeceu e foi circular, de copo na mão, pelos salões da mansão. Papeando com amigos, não pôde deixar de notar que o "garçon" que o atendera era festejadíssimo pelos demais convivas. Embaixadores o abraçavam, jornalistas o paparicavam, enfim, o homem era a "alma" da festa. Antes de pedir mais uma dose de uisque, Flávio olhou melhor para a cara do sujeito e .... caiu-lhe a ficha. O "garçon" de branco e gravatinha borboleta era ninguém menos do que o anfitrião. O próprio Roberto Marinho. Flávio se mandou da festa sem se despedir do "Moreno".
Por José Esmeraldo Gonçalves
Nota: Flávio Aquino era dono de uma vasta cultura. Foi arquiteto, jornalista e crítico de arte. Faleceu aos 67 anos, em 19 de janeiro de 1987.