No segundo semestre de 1972 um grupo de jovens ligados a um movimento esquerdista de classe média tentou roubar um banco em Ipanema no Rio de Janeiro e isso desencadeou a roda da insensatez. Um dos jovens foi baleado, uma companheira escapou junto com o ferido e uma vez tendo um namorado cuja mãe era médica e esposa de um político cassado, convenceu o namorado a levar o ferido até a mãe para retira-lhe a bala. Dito e feito, a mãe sentindo o “envolvimento” do filho (levar o ferido até ela), retirou e fez o curativo no rapaz em casa mesmo.
Algumas semanas mais tarde, na fuga, o jovem foi preso em Belo Horizonte e sob tortura abre tudo, inclusive o nome da médica que não sabia nada do movimento rebelde. O exército, à paisana, ligado ao DOI-CODI da Barão de Mesquita na Tijuca invade a casa do político e prende todo mundo, inclusive os jovens da vizinhança que costumavam freqüentar a casa. O político cassado é aprisionado, ameaçado para entregar o filho que nesta altura havia se refugiado em Saquarema praia onde rolava um fuminho, era disso que ele gostava, além do rock e do surf.
O pai é levado para a Barão de Mesquita, ameaçado sob pressão, posto na famosa geladeira e finalmente transportado para Saquarema para encontrar o filho que havia fugido dali. Depois é recolhido em casa e como o jornal do Brasil começasse a investigar a “ação” em plena zona sul, inclusive por denúncia de uma política que era amiga e vizinha do casal, o exército saiu de lá, mas levou a médica presa. A política era ligada ao Lacerda, amiga de generais e simpatizava com a direita brasileira e, assim mesmo denunciou a ação.
A médica desapareceu. Por trinta dias estava sumida. Mesmo o político cassado tendo grandes relações no Rio, não conseguiu apurar a situação da sua esposa. Finalmente receberam notícias que ela estava internada e que tinha sofrido uma cirurgia no Hospital do Exército. Orlando Geisel, Ministro do Exército de Médici, que já virara general de pijama no final do Governo Jango e por este foi promovido e tendo recebido a notícia a pedido de Jango pela voz do político cassado, mandou avisá-lo que ele iria visitar a esposa. Ele recebeu a autorização e foi na Barão de Mesquita para os trâmites finais.
Simultaneamente o General Fiuza, comandante do DOI-CODI telefonou para a política para se queixar por que o político cassado não o tinha procurado antes para saber notícia da esposa. A política lhe disse: ora General, ele não tinha que lhe procurar coisa alguma, você é que deveria ir procurá-lo. Então o político entrou na sala do General Fiuza que estava junto de outro oficial, o dispensou e veio até o político para tecer considerações que justificavam a tortura.
Coisas terríveis que tinha de praticar para receber informações sobre o inimigo. Ele até se lamentava por que já havia perdido alguns excelentes oficiais que se “viciavam” tanto nas sevícias e no sofrimento alheio que iam até o fim. E finalmente disse que a mulher tinha sido muito bem atendida no hospital do exército, que tinha sido atendida por um ótimo profissional. Um “ótimo profissional” que operava as pessoas sem nem ao menos consultar os familiares foi o que lhe respondeu o político cassado.
Aquilo era a senha final do enredo: o DOI-CODI já não sabia mais separar a boa fonte de informação daquela que não tinha informação alguma. Naquele caso, a médica só tinha duas informações: que havia retirado uma bala e esta fora de um jovem que ela nem sabia o nome. Eis o exemplo fatal da irracionalidade patológica sobre as instituições, de como psicopatas chegam a elas e como elas transformam pessoas normais em psicopatas irracionais.
Esta história se deu e aconteceu no clima dos anos setenta quando o Brasil se envolveu numa ditadura militar cujo eixo era a Guerra Fria. A luta para alguns entre os exploradores imperialistas e a libertação dos povos oprimidos. Ou para outros a luta entre o bem do capitalismo e o demônio do comunismo. Vieram os anos 90 e um dos pilares da guerra fria desmoronou e sobre os seus escombros os inimigos descobriram o horror da tortura e das prisões irracionais. Falo da ex-União Soviética. Claro que o inimigo do comunismo comemorava a própria vitória.
Terminamos os anos 90 com as bandeiras desfraldadas do neoliberalismo econômico, a globalização financeira a mostrar a nova realidade, o furor das privatizações e o muxoxo desdenhoso com os arcaicos da velha realidade. Foi aí que o primeiro mito caiu: o da infalibilidade física do imperial poder da globalização. As torres gêmeas de Nova York, precisamente por que era um prédio de abrigo dos especuladores de Wall Street, se desmorona com aeronaves civis do próprio império. O império era vulnerável: todo mundo assistiu pela rede mundial de televisões.
No final da primeira década dos anos dois mil, menos de vinte anos após o primeiro pilar da guerra fria vir abaixo, cai o segundo pilar. Hoje estamos num total desprovimento dos mitos destas duas forças do século XX. O século XXI finalmente começou como algo novo e diferenciado. Parece que as regras estão todas a mudarem. A racionalidade da marcha da expansão da Rússia e dos EUA foi historicamente superada.
Recente estudo no paraíso do liberalismo econômico, a Suíça, parece ter evidenciado o que sempre se soube desde o século XX: o equilíbrio ótimo, trazendo ganhos para todos que seria a racionalidade do Deus Mercado não existe. E não existe no real do mundo: nas pessoas que afinal demonstraram o mesmo vício dos torturadores do DOI-CODI da Barão de Mesquita.
O estudo comparou corretores da bolsa com um grupo controle de pessoas normais e com psicopatas internados em clínicas de segurança máxima da Alemanha. O que caracteriza os psicopatas? Comportamento egoísta e não-cooperativo, desprovidos de qualquer empatia e responsabilidade social. Pois bem os corretores se comportaram de modo menos cooperativo que os psicopatas. E tem coisa pior, que justifica a crise do mercado: os agentes financeiros tiveram resultados piores que os psicopatas em relação aos ganhos finais de suas decisões.
Acontece que os “psico-corretores” são apenas capazes de maximizar seus ganhos à custa dos oponentes. Tiveram desempenho péssimo no que se refere à performance geral, ou seja, nos tais ganhos absolutos que os clássicos da economia santificavam. Na verdade esta psicopatologia de mercado tem um comportamento altamente destrutivo do ambiente social e se expressa como diz o psiquiatra que realizou o estudo: “É como se você destruísse o automóvel do seu vizinho com um taco de beisebol, para que seu carro seja o mais bonito da rua”.
Enfim a dinâmica do outro pilar era a traição sistemática do companheirismo e da sociedade.