Hoje vou contar a história “Corpo sem Alma” do livro ”Fábulas Italianas”, coletadas e publicadas por Italo Calvino.
CORPO SEM ALMA
Era uma vez um menino, chamado Joanorzim, que queria correr mundo para fazer fortuna. Sua mãe lhe disse que só daria permissão quando ele fosse suficientemente capaz:
- Você ainda é muito novo, precisa crescer e ficar forte; tão forte que possa derrubar o pinheiro do quintal.
Todo dia a primeira coisa que Joanorzim fazia era marcar carreira e chutar os pés juntos contra o tronco do pinheiro. Nas primeiras vezes que fez isso se estatelava para trás e não conseguia mover nem uma folha sequer da árvore. Mas persistiu no seu intento.
Passa dia, passa mês, passa estação, passa ano, até que, numa certa manhã, Joanorzim conseguiu derrubar o pinheiro. Tinha se tornado um rapaz saudável, forte e belo.
Sua mãe o abençoou e ele partiu pelo mundo afora.
Depois de muitas andanças chegou a uma cidade, em que o assunto principal era o cavalo do rei. O que se dizia é que não havia homem que o cavalo não derrubasse; muitos cavaleiros já tentaram domar o cavalo Rondó, mas, logo eram derrubados.
Joanorzim ficou olhando a movimentação dos cavaleiros com Rondó e descobriu que o cavalo se espantava com a própria sombra. Quando todos tinham desistido de domar o cavalo ele entrou na estrebaria, aproximou-se de Rondó, chamou-o, alisou seu dorso, e, num repente saltou na sela e levou-o para fora, tendo o cuidado de manter o focinho do animal contra o sol. Rondó, não vendo a projeção da própria sombra, deixou-se levar pelo rapaz, que o esporeou e saiu a galope, conseguindo domá-lo em pouco tempo.
O cavalo estava domado, mas só obedecia e se deixava montar por Joanorzim, que com esse feito angariou a simpatia do rei e passou a trabalhar no palácio.
A amizade do rei pelo novo empregado despertou inveja nos outros serviçais, que logo armaram uma história para afastá-lo da vida palaciana.
Os empregados lembraram da filha do rei que havia sido roubada por um mago e, que, desde então, não se tinha notícias dela. Foram até o rei e disseram que Joanorzim vivia se gabando de que era capaz de libertar a princesa, estivesse ela sob o poder de quem fosse.
O rei encheu-se de esperança e mandou chamar o rapaz, que negou, disse que nunca falou tal asneira, mal sabia desse sucedido com a princesa.
Mas Sua Majestade Real, achando que o rapaz havia brincado com um assunto que tanto o machucava, impôs autoridade, ordenou que ele partisse e só voltasse trazendo a princesa, caso contrário mandaria cortar sua cabeça.
Não tendo outra alternativa, a não ser obedecer, Joanorzim pediu uma espada e partiu montado no cavalo Rondó. No outro dia, quando atravessava uma floresta, se deparou com um leão, que o convidou a desmontar e escutar o seu pedido:
- Aqui estamos em quatro: eu, a formiga, o cão e a águia. Temos esse burro morto para ser dividido. Use sua espada e faça a divisão entre nós.
Joanorzim sabia que o melhor a fazer era atender ao pedido do leão, e repartir o animal morto da forma mais justa possível. Então, cortou a cabeça do burro e deu para a formiga:
- Tome, é uma casa para você e cheia de comida.
Deu as patas para o cachorro e disse-lhe que ali havia muito osso para ele morder, até enjoar. A águia ganhou as tripas: - “pode até levar para o alto de uma árvore”-, sugeriu Joanorzim.
O leão ficou com o resto do corpo, pois era o maior de todos eles.
Concluída a divisão, Joanorzim montou em seu cavalo, já ia partindo quando foi chamado mais uma vez. “Agora não tem escapatória, ai, ai, ai” pensou. “Será que fui injusto na divisão?”
Contudo, o leão falou:
- Você fez uma divisão justa, está tudo muito bem distribuído, queremos lhe agradecer. Tome uma das minhas garras, se você usá-la se tornará o leão mais feroz do mundo.
O cachorro deu-lhe um dos seus bigodes e disse que quando o colocasse sob o nariz, se tornaria o cão mais veloz do mundo.
A águia o presenteou também:
- Aqui está uma pena das minhas asas, quando precisar use-a e se tornará a mais forte e maior das águias.
Por último a formiga lhe deu uma das suas patinhas e assegurou-lhe que quando a usasse se tornaria uma formiguinha tão miudinha, que nem lentes de aumento revelariam sua existência.
Joanorzim agradeceu os presentes e partiu, mas, tão logo se distanciou dos animais quis testar a eficiência das oferendas. “Será que estão zombando de mim?” – pensava o rapaz -, “melhor verificar”.
Começou com a garra do leão – e tornou-se leão; depois usou a pena da águia – tornou-se águia; a patinha da formiga o fez formiga e o bigode do cão o fez cão. Testou os objetos algumas vezes mais, e, convencido da validade dos presentes, retomou seu caminho, atravessando um bosque até chegar à beira de um lago. Em cima do lago havia um castelo – o castelo do mago Corpo-Sem-Alma.
“Está na hora de usar o presente da águia” -, decidiu o rapaz e transformou-se numa águia que voou até o peitoril de uma janela fechada.
“A formiga entrará fácil por uma fresta” -, e logo, logo havia uma formiga deslizando na face da bela princesa, que dormia no aposento. Joanorzim tentava fazer-lhe cócegas na bochecha para acordá-la. Quando a princesa despertou viu Joanorzim, que havia voltado à forma humana e fazia-lhe sinal de silêncio, que tivesse calma.
- Não temas, princesa. Estou aqui para te libertar, mas é necessário que descubras o que se deve fazer para acabar com o mago que te mantém prisioneira.
À noite quando o mago chegou, Joanorzim se transformou novamente em formiga e a princesa tratou Corpo-Sem-Alma com grande carinho, afagando-lhe a cabeça, enchendo-o de dengos:
- Ah, meu caro mago, eu fico tanto tempo aqui sozinha pensando, aguardando sua presença, que me faz tanto bem... Mas, tenho medo de perdê-lo, apesar de saber que você é um corpo sem alma, que não morre nunca, temo que descubram onde você guarda a alma e que o matem.
- Ora, minha querida princesa, isto é coisa impossível. Vou contar a você, que está presa aqui e não pode me trair, o caminho que seria preciso trilhar para me atingir. Primeiro teriam que enfrentar o leão negro do bosque e matá-lo, tirar de suas entranhas o cão negro, que é veloz, nenhum outro o alcançaria e mataria; mas se isso acontecesse seria preciso derrotar a águia negra que está na sua barriga. Não sei se qualquer outra águia ousaria desafiá-la, mas se a águia negra fosse também morta, seria necessário retirar do seu ventre um ovo negro e quebrá-lo na minha testa para que eu morresse. Vê como é um caminho difícil de ser feito? Deveria eu ficar preocupado? Que nada!
Joanorzim, a formiga invisível, ouviu tudo. Passou por uma fresta e chegando ao peitoril da janela voou como águia para o bosque. Transformou-se em leão – o mais forte da terra – e saiu caçando o leão negro até encontrá-lo. Enfrentaram-se. Joanorzim destroçou o leão negro.
Neste exato momento, lá no castelo, o mago sentiu a cabeça girar.
No bosque Joanorzim abriu a barriga do leão e saltou fora um cão negro, velocíssimo, porém o rapaz transformou-se no cão mais rápido do mundo, que logo o alcançou. Travaram uma grande luta e no final o cão negro tombou morto.
O mago, não suportando a tontura e as dores de cabeça, acamou-se.
Enquanto isso, no bosque, aberto o ventre do cão, voou a águia negra, que passou a lutar com Joanorzim, transformado na maior águia do mundo: grandes bicadas, ataques com garras, bica daqui, bica dali, luta que luta, até que dos ares cai morta a águia negra.
No castelo, o mago tem tremores, calafrios, febre altíssima, delírios.
Joanorzim retirou o ovo negro do ventre da águia negra e levou-o para a princesa, que exultante, perguntava ao rapaz o que tinha feito para consegui-lo.
- Foi simples. Agora é sua vez de agir, mas lembre-se que é preciso quebrar o ovo na testa do mago.
A princesa levou um caldo para o mago, demonstrando cuidado e preocupação com seu estado:
- Caríssimo, como está?
- Ai, ui. Estou muito mal, fui traído.
- Trouxe-lhe uma sopa quentinha. Tome.
Quando o mago sentou-se na cama e ia colocando a primeira colherada de sopa na boca, a princesa o interrompeu:
- Para ficar mais substanciosa, vou acrescentar um ovo. Aguarde um pouquinho que vou providenciar.
Falando assim, a princesa quebrou o ovo negro na testa do mago Corpo-Sem-Alma, que morreu num segundo.
Agora a princesa estava livre para voltar para as terras do seu pai. Joanorzim levou-a ao rei, e pediu-a em casamento e foram todos felizes para sempre.
Pé de pinto, pé de pato,
Peço agora que me conte quatro.
2 comentários:
Adoro esse final. Torna a contação de histórias
infindável!
Obrigada, Bisaflor, por esta maravilha.
Grande abraço
Gostei muito!
abraços
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