por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Mais um texto do grande Geraldo Ananias !




Maria da Bilha


O desejo de rezar já é oração
(Georges Bernanos, escritor francês)


Era 26 de março de 2008. Dia chuvoso, nublado e muito frio no sopé da Serra do Araripe. Ali, precisamente no sítio Almécegas, na casa de Dona Toíte, encontravam-se três amigos, todos cearenses, há muito radicados em Brasília e que desta cidade tinham ido para compromisso cultural no Crato, o que ocorreria dois dias depois daquela data: lançamento do segundo livro de um deles, filho da anfitriã, o Parrim — apelido colocado pelo pai, que significa paizinho.
Naquele dia eles se levantaram cedinho tiritando sob o açoite do vento gelado que descia assoviando cordilheira abaixo, em velocidade comparável à dos ariscos cavalos de vaquejada. Justificar
O Cariri Cearense é desse jeitinho mesmo: verdadeiro oásis no sertão, suíça nordestina (sem gelo). Também se congelasse, vixe Maria, não sobraria um só caba da peste para contar a história.
Parrim não escondia a felicidade com a presença dos amigos que, pela primeira vez, visitavam a região. E ele ficava o tempo todo lhes contando sobre a beleza do Crato (Venham ver a beleza do Crato, venham ver minha terra natal. O meu Crato é um paraíso...) ,local em cuja zona rural, Almécegas, morou dos sete aos dezenove anos. Também não esquecia de falar da cidade em que nascera, Santana do Cariri, lá do outro lado da encosta da Serra do Araripe, local que eles iriam visitar logo mais, depois do café da manhã.
Um dos companheiros chamava-se Fittipaldi . Conta-se que este, quando na época de juventude, tinha um fuscão preto turbinado e nesse carro, para os mais exagerados, corria pelas ruas de Fortaleza em velocidade comparável a de um raio. Eis a razão do apelido atrás mencionado.
Hoje, devido ao peso natural dos anos, os dois já não correm mais. O carro, por ter virado sucata; o Fittipaldi, por haver se transformado num homem ajuizado, um senhor pacato, pai de família exemplar.
Oficial reformado do Exército, agora tem como passatempo estudar a língua pátria e sobre esta, aliás, tem bom domínio: articula frases bem construídas, com precisão nas concordâncias verbais e nominais. Dá gosto ouvi-lo conversar. Fala mansa, pausada e bonita; é preciso no que diz e não bate a biela nunca ; camarada porreta.
O outro visitante, ou seja, o terceiro parceiro, era o Doutor (com “D” maiúsculo) mesmo. E doutor por quê? Longa história...
Quando era menino, tinha como hobby chamar nomes feios. O bichim era craque no ofício de dizer palavrões: “fio de rapariga” para ele era café pequeno. E tinha mais — além de conhecer quase todas as palavras indecentes até então vigentes (viçar, baitolar, empombar...), era mestre no ofício de com elas criar novos turpilóquios por derivação. E mais, tinha uma habilidade impressionante de construir substantivos compostos (nomes feios) a partir dos simples pré-existentes e destes fazer diversificadas combinações com adjetivações bem qualificadoras. Exemplo: corno (substantivo simples); corno-manso (substantivo composto); corno-manso arrombado da peste (aqui já o composto com atributo).
Agora diz ter esquecido esse ofício, ou melhor, deixado isso de lado, pois hodiernamente, a exemplo do Fittipaldi, é também oficial reformado do Exército; senhor religioso, pacato, tranquilo, amigo, de fácil trato, de sorriso largo, bom pai de família. Palavrão então para ele agora é coisa do passado.
Devido a outra habilidade que sempre deteve — a de arrancar facilmente doces acordes da viola e de soltar uma voz linda, harmoniosa e encantadora, o Doutor sempre teve outro apelido concorrente a este, que é o de Bico-doce .
O homem canta muito bem, principalmente canções de nossa terra, lá do Nordeste querido e particularmente de nosso Ceará. De Luiz Gonzaga (Gonzagão), por exemplo, ele conhece e canta muita coisa.
O Doutor-bico-doce fez rápida apresentação na rádio local do Crato-CE e agradou. Emocionou todos que o ouviram. Num piscar de olhos, o caba cantou e tocou, de forma linda e magistral, a maravilhosa canção “vim-vim” (Roendo Unha) do cancionista maior das terras nordestinas, o mestre Gonzagão:

Quando o vim-vim cantou
Corri pra ver você
Atrás da serra o sol tava pra se esconder
Quando você partiu, eu não esqueço mais
Meu coração, amor, partiu atrás

Vivo com os óios na ladeira
Quando vejo uma poeira
Penso logo que é você
Vivo de oréia levantada
Para o lado da estrada
Que atravessa o muçambê
Olha, eu já estou roendo unha
A saudade é testemunha
Do que agora vou dizer...

Ele encantou. Foram muitas palmas. Ficou famoso.
Logo depois do café da manhã, Parrim foi logo entrando no carro e chamando os dois amigos para a viagem a Santana do Cariri:
— Vamos, moçada, vou mostrar-lhes todas as passagens bonitas da viagem daqui até lá, tintim por tintim, disse entusiasmadamente.
Logo ao passar pela estrada que separa as terras da família do Parrim das do Colégio Agrícola, em determinado lugar, ele parou o carro e, apontando para um capinzal à beira da estrada, disse aos companheiros:
— Foi aqui que certa vez cheguei de carro e encontrei “meu velho” pastoreando gado. Falei com ele e, tendo em vista que fazia muitos anos que não o via, ele não me reconheceu...
Mais embaixo, na “curva dos portões”, Parrim informou aos compartes que fora exatamente naquele local em que, tempos atrás, quando tinha 10 anos, ele e o pai estavam aguardando um veículo, e este o havia pedido para ler os letreiros de um caminhão misto. Mas não dera conta. Foi quando então seu pai dissera uma frase marcante e emblemática: “Coitado de meu filho, não sabe ler”.
Cerca de quatro quilômetros estrada acima no rumo da Serra, a contar dos “portões”, passaram pelo município das Guaribas.
Mais adiante um pouco, chegaram à divisa de Pernambuco com o Ceará. Ali bem próximo ainda restava a trilha do antigo “campo de aviação” do Crato. Nesse instante, Parrim reduziu um pouco a velocidade do carro e, apontando para lá, disse:
— Cansei de sair de casa a pé, cedinho, com meus irmãos e meu pai trazendo uma matula e uma cabaça d’água para ver o avião aterrissar ali no campo. E continuou dizendo que outra coisa que ele achava muito bonito era o microônibus (verdinho) da antiga empresa VARIG, que descia serra abaixo a toda velocidade com os felizes passageiros do avião. E acrescentou: “A minha vontade não era andar de avião, isso sabia que jamais aconteceria. Todavia, pegar um bigu nesse ônibus era o maior sonho que tinha naquela época...”.
E continuou:
— Vocês estão vendo aquele pé de pequi ali? Certa vez meu irmão, ainda garotinho, tinha vindo deixar um gado em Santana e ao voltar sozinho montado numa burra, já quase à noite, dela apeou para fazer xixi. Nesse momento, algo a assustou, e ela disparou sozinha numa careira terrível somente indo parar em casa, lá nas Almécegas, a uns oito quilômetros daqui. E o coitado de meu irmão saiu chorando atrás, correndo risco até mesmo de ser atacado por onças, pois naquela época havia muitos bichos ferozes aqui, concluiu.
Ato seguinte tentou sintonizar uma rádio qualquer, e foi muito engraçado, ao ouvirem um locutor, possivelmente por brincadeira, anunciar o seguinte: “Atenção, muita atenção — em Tabuleiro do Norte, ontem de madrugada, o cego Zé Furacão foi pego pela segunda vez dirigindo em alta velocidade, bêbado e sem carteira.” Todas caíram na gargalhada.
Minutos depois, na descida próximo à cidade de Nova Olinda, e já a uns quarenta minutos do início da viagem, Parrim ainda conversando muito com os colegas sobre seu tempo de criança, lembrou de uma antiga história acontecida com ele exatamente no local em que se encontravam:
— Certo dia voltava com meu irmão Paulo de férias do sítio Taboquinha em cima de um caminhão carregado de algodão e, por cima, encoberto de couros crus, que exalavam um cheiro insuportável de carniça. O caminhão vinha em sentido contrário ao que estamos indo. E, no exato momento em que subia esta ladeira aqui, começou a chover. Só que a estrada àquela época era de barro e deslizava muito. Ainda era cedo da noite, e tivemos que dormir aqui mesmo: ora na chuva, ora debaixo dos couros fedorentos. Ficávamos alternando, pois ninguém aguentava ficar muito tempo quieto em um desses dois lugares, isto é, na chuva ou debaixo da uma lona fedorenta. Foi uma noite que parecia não ter fim.
Ao chegarem a Nova Olinda, cidade a cerca de dez quilômetros de Santana, e esta destino final da viagem, avistaram uma placa bonita por sobre a BR anunciando que ali era região turística dos descendentes dos “Kariris”.
Logo a seguir, tomaram a estrada à esquerda da rodovia em que estavam, a que ia direto para Santana do Cariri.
— Como vocês podem notar, a estrada não é um tapete de boa?! Disse Parrim a seus amigos, se baseando apenas na que já havia passado.
Foi fechar a boca — num caé lascado — caíram com carro e tudo num imenso buraco. Por pouco o veículo não capotou. Daí os amigos, que a essa hora se encontravam completamente silentes, caíram numa gargalhada sem tamanho. E o Doutor imediatamente, sem perder o humor aguçado, disparou sonsamente a seguinte pergunta:
— Como é mesmo o nome da padroeira de Santana do Cariri?
— É Nossa Senhora Santana, disse-lhe Parrim mais que depressa.
O interlocutor então arrematou impiedosamente:
— Pois é, meu amigo, com o toró que está caindo e com a buraqueira que há nesta estrada é melhor fazermos logo uma promessa a Nossa Senhora Santana para que nos conduza em segurança e paz até lá, pois não sei não...
Realmente, devido ao tráfego de caminhões pesados carregando pedra de gesso e às incessantes chuvas ocorridas naquela região, a rodagem que liga Nova Olinda a Santana do Cariri, inacreditavelmente, tinha se transformado numa buraqueira só.
Mas tocaram vagarosamente o carro em direção a Santana. Afinal era pequena a distância a percorrer. Depois de muitos solavancos e sustos, finalmente, chegaram ao destino.
Primeira parada na cidade foi em frente à Câmara Municipal. Desceram do carro, e o Doutor como estava louco para fazer xixi, foi logo perguntando a um moço de uma borracharia ao lado onde se podia encontrar um local em que pudesse urinar.
— Ó, pode deixar o carro aqui. Desça a pé mesmo, dobre na primeira rua à esquerda e você logo verá uma placa escrita assim: “Restaurante Frei Damião”. Pronto, lá é um restaurante bem legalzinho e você pode fazer suas necessidades, é um dos melhores restaurantes da cidade, disse o rapaz.
E os três amigos seguiram o conselho do moço. Ao chegarem à esquina da primeira rua e ao olharem à esquerda, logo avistaram, dependurada por uma corda, e meio torta, uma placa inusitada à frente de uma casinha simples, onde se podia ler um letreiro bem visível que dizia assim: “Restaurante Frei Damião. Organização Maria da Bilha”.
O Doutor foi logo correndo na frente. Estava realmente muito apertado. Quando os outros dois companheiros chegaram à porta do restaurante, já ouviram a voz dele lá de dentro do banheiro. Estaria falando sozinho?
Depois foi aquela conversa amistosa. Até parecia que todos ali eram amigos havia tempo...
O Doutor, já aliviado e na sala, virou para o Fittipaldi e para o Parrim e disse com o coração cheio de sentimento:
— Veja, uma coisa tão humilde, tão simples... e as pessoas tão felizes. Isso nos emociona e nos traz uma grande lição, a de que “a felicidade é um estado de espírito”.
Ato contínuo, Maria da Bilha começou a puxar conversa. Parecia uma matraca de tanto falar. Na verdade, sequer esperava que os visitantes respondessem às próprias perguntas dela que já ia formulando novos questionamentos e comentários.
Repentinamente, saiu com esta pérola:
Ei, minha gente, hoje é dia de festa aqui em casa. E batendo no ombro de um jovem senhor, aduziu:
— Estamos completando três anos de casados. Somos muito felizes, vivemos com muito amor. Daí reparou para uma garrafa de pinga estrategicamente posta em cima da mesa e indagou: “Vocês não querem tomar uma não?”
Parrim, já meio emocionado por estar de volta à sua terra natal e dessa feita trazendo dois amigos para conhecer o local, mesmo não tendo hábito de tomar cachaça, foi o único que aceitou a empreitada.
Ela pôs uma dose caprichada, daquelas de lascar o peito. E Parrim, pimba, a entornou de uma só vez, chega saiu fogo pelos olhos.
— A senhora tem refrigerante, D. Maria? Perguntou Fittipaldi.
— Não tenho, meu filho. Só se mandar comprar...
Parrim então interveio e, acenando para os amigos, disse para ela não se preocupar com nada, pois eles já estavam de saída. E acrescentou que de outra vez ficariam um pouco mais. E se despediram.
Já na saída, o filho da terra se lembrou da pinga:
— Sim D. Maria, por favor, quanto é mesmo a cachaça que tomei?
— Nada, meu filho, vê se vou cobrar uma pinga de vocês!
Ela até então não tinha ficado sabendo sequer de onde aquelas três pessoas eram e muito menos o que eles teriam ido fazer ali, tampouco que um deles era filho da terra e que estava de volta para o lançamento de um livro.
De volta ao carro, o Doutor chamou a atenção dos companheiros para a sede da Rádio Santana FM, que ficava do lado contrário de onde eles se encontravam. Nesse ínterim, ele, ao avistar um rapaz abrindo a cabine do estúdio, foi até lá e o cumprimentou, oportunidade em que ficou sabendo que se tratava de um dos locutores da rádio. E, chamando os outros dois companheiros, começaram todos a conversar. Daí o Doutor falou que eles estavam ali para distribuir convite para o lançamento do segundo livro de um dos companheiros, o Parrim, que era, por sinal, filho da terra, cujo evento viria ocorrer no ICC do Crato. Em seguida, perguntou ao radialista se havia interesse por uma entrevista.
Diante da informação e da indagação feita pelo Doutor, o locutor DJ Jucy, surpreso, gentilmente se dispôs a telefonar, por celular, para o outro locutor-editor, o jovem Geânio Felipe, que imediatamente veio para a emissora com o propósito de conduzir a confabulação.
Menos de cinco minutos depois, a entrevista já estava no ar. E o locutor Geânio transformou o encontro de cerca de vinte minutos num bate-papo muito agradável, construtivo e por demais emotivo. Foi brilhante a sua atuação como entrevistador.
Iniciou sua fala dizendo da importância do encontro. Fez logo um relato sucinto do teor da conversa. E, como de praxe para ocasiões da espécie, deu boas-vindas ao filho da terra e aos amigos deste, colocando imediatamente os microfones da emissora para as palavras iniciais do entrevistado.
Ao deitar os olhos sobre o convite que lhe fora entregue momentos antes, já de pronto e de viva voz, passou o resumo do livro para o público ouvinte.
Obteve do entrevistado informações as mais diversificadas possíveis sobre o passado do autor naquela cidade; indagou também sobre aspectos relacionados à falta de apoio dos órgãos governamentais à cultura; a importância da educação e da cultura. Conduziu o convidado a falar pontualmente sobre as coisas da infância em Santana de outrora e assim por diante. Foram realmente momentos mágicos, pelo menos para o entrevistado, filho da terra, que teve a oportunidade de, utilizando a imprensa falada, dizer, de viva voz, o quanto se orgulhava de sua terra e de sua gente.
Não bastasse, algo inimaginável estava para acontecer, coisa que coração algum conseguiria aguentar.
Repentinamente, Maria da Bilha, a proprietária do restaurante Frei Damião, como um vulto, abre sorrateiramente a porta e adentra o estúdio da rádio. Fica caladinha de pé ao lado das cadeiras onde estavam os três visitantes sentados, sem que ninguém percebesse sua presença. E foi nesse exato momento em que o locutor, com voz saudosista, pediu para que o entrevistado, falasse de sua infância em Santana dos velhos tempos:
— Era muito diferente a Santana de antigamente? Fale alguma coisa sobre seus sonhos de criança aqui, disse o locutor.
Quando o Parrim, a essa altura, diga-se de passagem, já muito emocionado, começou a falar sobre os amigos de infância, sobre os passeios que fazia com o pai pela praça da cidade, de repente, virou-se para o lado e, inacreditavelmente, viu aquela senhora, ali pertinho, com as mãos trêmulas, tentando enxugar fios de lágrimas que lhe desciam dos olhos miúdos e sofridos, escorrendo pela face de textura abrasiva, sinal perene das marcas do tempo.
Desnecessário é dizer que a entrevista praticamente parou naquele momento, pois o entrevistado emudeceu. A emoção foi tamanha que lhe invadiu a alma e o coração, e seus olhos também choraram. E o mesmo aconteceu com os outros dois companheiros.
Repentinamente:
— Meu filho eu reconheci sua voz pelo Rádio e corri pra cá. Que emoção ver e ouvir você falando de seu tempo de criança aqui em Santana. Não acredito que você é mesmo filho daqui... Que alegria! Vamos voltar lá pra casa de novo, por favor. Vou arrumar agora um refrigerante pra você e fazer um cafezinho. Eu só lhe dei uma pinguinha, meu Deus...


Geraldo Ananias Pinheiro
Geraldo.ananias@terra.com.br
Brasília (DF), junho/2008

Um comentário:

socorro moreira disse...

Ai, que delícia de texto !
A música convidando para um arrasta-pé feliz !
Precisava desta alegria.
Obrigada, Geraldo Ananias !