O paradoxo do Vaticano: uma maioria homossexual e
homofóbica
“Não é um lobby, e sim uma maioria
silenciosa”, diz o sociólogo francês Frédéric Martel. Ele é autor de ‘No
Armário do Vaticano’
París - 18
FEB 2019 - 18:31BRT
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Dos
seminários à cúpula do Vaticano, a homossexualidade é onipresente na
Igreja Católica e ajuda a entender as crises que atingiram a instituição nas
últimas décadas, da queda da vocação sacerdotal ao encobrimento do abuso de
crianças, além de campanhas contra o papa
Francisco.
Essa
é a opinião do sociólogo e jornalista francês Frédéric Martel que em quatro
anos entrevistou 41 cardeais, 52 bispos, núncios apostólicos, embaixadores
estrangeiros e mais de 200 sacerdotes e seminaristas em busca do "segredo
mais bem guardado" da Igreja. O resultado é No Armário do Vaticano
– Poder, Hipocrisia e Homossexualidade, mais de 600 páginas nas quais
Martel (Châteaurenard, França, 1967) expõe a vida dupla e moral do catolicismo
romano. A obra "que fará o Vaticano tremer", como resume o
jornal Le Monde, será publicada em oito idiomas e em 20 países,
coincidindo com a cúpula sobre pedofilia convocada
pelo Papa. O livro, com lançamento mundial na próxima quinta-feira, ainda não
tem data para ser publicado no Brasil.
O autor entrevistou a 41 cardeais, 52
bispos, núncios apostólicos , embaixadores estrangeiros e mais 200 sacerdotes e
seminaristas.
Os
homossexuais, segundo Martel, “representam a grande maioria” no Vaticano. Não
estima a quantidade, embora uma de suas fontes lhe garanta que seja “da ordem
de 80%”. O autor acrescenta que, entre os 12 cardeais que cercavam João Paulo
II na década de oitenta e noventa — em plena devastação pela AIDS e
que definiram sua política contra os preservativos —, a maioria era de
homossexuais. Para afirmar isso, se baseia nas entrevistas realizadas, algumas
com os próprios cardeais.
“A
vida privada dos indivíduos lhes diz respeito, e eu quase diria que não nos diz
respeito”, diz numa entrevista ao EL PAÍS. “Mas os efeitos deste segredo e
desta mentira na ideologia do Vaticano, e suas consequências no mundo, são
consideráveis.”
O
autor evita falar em “lobby gay”: “Não é um lobby, é uma comunidade. Não é uma
minoria que atue, e sim uma maioria silenciosa. Um lobby seria gente unida por
uma causa. Aqui cada bispo ou cardeal se esconde dos outros e ataca a homossexualidade dos
outros para esconder seu segredo”.
As
conclusões do livro e algumas cenas podem parecer ousadas e até mesmo devassas
em alguns momentos. “Meu tema não são as festas chemsex”, esclarece Martel em
alusão às orgias com drogas que apareceram meses atrás na imprensa italiana.
“Meu tema não são os abusos. Meu tema é a vida banal e trágica dos sacerdotes
condenados a uma castidade antinatural. E essa gente está presa na armadilha de
um armário onde eles mesmos se fecharam, do qual não sabem sair, enquanto no
lado de fora todo mundo se diverte.”
A
originalidade de sua investigação é que estabelece a homossexualidade — uma
homossexualidade calada e misturada a homofobia — como núcleo do sistema
eclesiástico. “Quanto mais homofóbico for um bispo, mais possibilidades há de
seja homossexual. É o código”, diz na entrevista.
É
a chave que permite entender muitos de seus problemas. A reduzida capacidade de
atrair a futuros sacerdotes, por exemplo. “Antes, quando você era um menino de
17 anos em um povoado italiano ou espanhol e descobria que não se sentia
atraído pelas mulheres, a Igreja era um refúgio. Deixava de ser um pária do
qual as pessoas zombavam no pátio da escola para ser considerado Deus”,
argumenta. Mas os tempos mudaram. “Inclusive no vilarejo italiano há outras
opções além de virar sacerdote.”
Martel
insiste no aparente paradoxo de um discurso contra a homossexualidade num
Vaticano majoritariamente homossexual. Aborda a trajetória de vários líderes da
linha mais rigorosa, como o colombiano Alfonso López Trujillo, já falecido, com
relação ao uso do preservativo, e do espanhol Antonio Rouco Varela contra o
casamento gay.
O
autor se desvincula das denúncias do arcebispo ultraconservador Carlo Maria
Viganò, adversário do papa Francisco, e nega que haja um vínculo entre a
homossexualidade e os abusos
sexuais na Igreja. Mas acredita que a cultura do sigilo
decorrente da necessidade de ocultar a homossexualidade protege os abusadores.
“Se
você é um bispo e protege a um sacerdote, por que faz isso?”, pergunta-se.
“Acho que, numa ampla maioria dos casos, os bispos que protegem os abusadores
protegem a si mesmos. Têm medo. Acho que a grande maioria de bispos e cardeais
que protegem a sacerdotes pedófilos é de homossexuais.”
Angelo
Sodano, que foi núncio apostólico no Chile durante os anos de Pinochet e
secretário de Estado no pontificado de João Paulo II, aparece como um dos
vilões do livro — por causa de seus supostos arranjos com o regime
pinochetista, e também pelo caso do sacerdote chileno Fernando Karadima, a quem
Francisco expulsou do sacerdócio em setembro.
“Parece-me
claro que Sodano, de acordo com todos os depoimentos, das vítimas e dos
advogados das vítimas, não teria participado dos abusos sexuais de Karadima.
Por outro lado, parece impossível que não estivesse a par dos abusos.”
E
se Sodano é o vilão dessa Sodoma (o título original do livro), o herói é
Francisco. “Por trás da rigidez, sempre há algo escondido; em numerosos casos,
uma vida dupla”, disse o Papa em outubro de 2016. “O Papa”, argumenta o livro,
“deixa acuados certos cardeais conservadores ou tradicionais que rejeitam suas
reformas fazendo-lhes saber que conhece sua vida oculta”.
O
“quem sou eu para julgar?” que Francisco pronunciou em julho de 2013 ecoa por
todo o livro. Martel lhe enviou um exemplar.
ESPECIALISTA NO MOVIMENTO
HOMOSSEXUAL
Frédéric
Martel (Châteaurenard, França, 1967) não é um vaticanista, e sim especialista
no movimento homossexual e autor de dois livros de referência, Le Rose
et Le Noir ("O rosa e o negro", um retrato dos homossexuais
na França desde 1968), e Global Gay, sobre a globalização da
questão homossexual. Seu novo livro, No Armário do Vaticano (Sodoma,
no título original), uma mistura de reportagem jornalística e ensaio cultural,
não se apresenta tanto como uma investigação sobre uma comunidade religiosa, e
sim sobre uma comunidade gay, uma das "mais numerosas do mundo". E
escreve: "Duvido de que haja tantos [homossexuais] mesmo em Castro, em San
Francisco, esse bairro gay emblemático, hoje mais misto".
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