Suetônio
Carabina jamais imaginou que , um dia, seu caminho cruzasse com o do machadiano
Simão Bacamarte. Havia lá algumas similitudes que transpunham os sobrenomes
francamente bélicos: os dois eram médicos e terminaram, nas suas histórias,
passando por algumas sinucas de bico. Suetônio, no entanto, abraçara a cirurgia
e Simão, o personagem principal de “O Alienista”, fizera-se psiquiatra e
acabara por virar de ponta cabeça a pequena Itaguaí. Suetônio , mais jovem, instalou-se na
beira-mar , sob a filosofia simplória ( tão preponderante entre os seus pares) de
que quem faz carreira no mato é preá e calango.
Carabina
seguiu o curso esperado na sua profissão. Vida de louco, saltando de plantão em
plantão, buscando salvar vidas praticamente com as unhas e os dentes, em meio a
serviços totalmente destroçados. Casou , teve dois filhos, financiou um
apartamento e dois carros importados e , beirando os cinqüenta, aguardava
apenas o enfarte. Construiu ainda uma
casa enorme na praia, onde buscava compensar o espaço que lhe faltava no
apartamento e na vida. Final de semana, invariavelmente, partia para lá com a
mulher e os filhos que, já fisgados pela mordida de cachorro doido da
adolescência, iam trombudos e sob protesto. Na sexta, à tarde, a esposa partia
com os meninos e Suetônio seguia apenas
do dia seguinte. Há mais de quinze anos dava plantão na emergência
de um hospital de periferia, exatamente nas sextas feiras.
Anos
e mais anos naquela rotina, um dia, não mais que de repente, Suetônio esbarrou
com uma vizinha no elevador. Em casa, ele e a mulher já haviam se tornado quase
que irmãos. Afinal , comentava ele com os colegas, um sujeito que come a mãe
dos próprios filhos deve ser um tarado sexual. Conversa vai , conversa vem,
terminaram por trocar telefones e passaram a namorar por baixo de sete capas.
Altina era uma morenaça de meia idade, recém separada e que ainda carregava
consigo algum travo do veneno que se foi
destilando no relacionamento passado. Passou,
assim, a utilizar, facilmente, o
antídoto carabinesco como droga de eleição. Estabeleceu-se, claro, um grande
problema lojístico. Ele e Altina moravam no mesmo prédio, qualquer deslize: a
vaca escorregaria para o brejo.
De
início combinavam , por telefone, encontros em motéis distantes. Aos poucos, no
entanto, Suetônio percebeu que a sexta feira à noite transformara-se num
achado. A esposa e os filhos já estavam na praia. Ele apenas entregava o
plantão a um colega a partir das dez da noite. Voltava para casa, ligava para
Altina que, sorrateiramente, subia para seu apartamento e, aí, a lua de
mel estava garantida. No dia seguinte,
cedinho, a noiva se esgueirava escada abaixo e ele partia para praia, cansado,
estafado de um plantão bem mais caloroso e lúdico.
A
farra permaneceu imutável por mais de um ano. Um dia, no entanto, como podia se
prever, o cão atentou. Não se sabe bem se a hecatombe teria acontecido por mero
acaso ou se a esposa de Carabina desconfiou de alguma coisa : algum telefonema,
alguma peça íntima extraviada. O certo é que, sob o pretexto de ter esquecido a
chave da casa da praia, de madrugadinha, a patroa retornou numa fatídica sexta feira.
Abriu a porta do apartamento com a outra chave que carregava no chaveiro do
carro. Quando empurrou a porta do quarto de casal, quase cai estupefata com a
cena que presenciou. Suetônio e Altina, em pelo, dormindo o sono dos serafins, na
cama do casal, após a estafante batalha
de Eros.
A esposa armou o maior barraco:
---
Na minha cama, seus sem vergonhas ! Me
respeitem ! Peraí queu voltou já e vai ser caco de ovo e de priquito pra tudo
quanto é lado !
A
mulher, como um miúra enfurecido, partiu para a cozinha em busca do rolo de
pastel. Altina, juntou os trapos, como pode , vestiu-se à medida que descia as
escadas, e se escafedeu, antes que a fera voltasse para cumprir a ameaça e
chegassem as testemunhas oculares para flagrar o mico. Quando a esposa retornou,
ainda aos berros, encontrou um Carabina estranho. Olhos fitos na parede,
face inexpressiva, sem balbuciar
qualquer palavra. Nem sob a ameaça do rolo de pastel no toitiço, Suetônio se aluiu. Permaneceu
imóvel por mais de meia hora, quando se levantou, abriu o guarda roupas, vestiu
o smoking , pôs o cromo alemão nos pés e depois partiu para o banheiro e entrou debaixo do chuveiro. Voltou, sem
dizer palavra, plantou bananeira e ficou assistindo televisão de ponta cabeça. De
início a esposa ainda enfurecida, imaginou que tudo fosse uma armação, mas ,depois
do segundo dia, começou a se preocupar. Carabina permanecia silente, não se
alimentava, parecia alheado. Foi aí que resolveu chamar um colega e compadre
psiquiatra, o Dr. Loreto.
O
alienista veio de pronto e encontrou um paciente totalmente desconectado do
mundo. Pensou , de início, num surto agudo de esquizofrenia catatônica. Quando
a esposa, no entanto, saiu do quarto, em plena consulta, para pegar alguns
remédios que Carabina tomava eventualmente, súbito o paciente recompôs-se e
sussurrou para o psiquiatra:
---
Loreto, bico calado! Me interne imediatamente, depois eu te conto tudo !
O
alienista sacou que havia alguma coisa errada. Quando a esposa retornou ele
disse-lhe que , a seu ver, parecia um surto psicótico e que se fazia imperioso
um internamento em uma Clínica de Repouso.
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É para prórpia segurança dele e da família !Avise aos familiares e amigos que
se trata de uma estafa, para não queimar o filme do meu compadre !
Procedido
ao internamento, Loreto , por fim, ficou
a par da enrascada em que Carabina se
metera. Manteve-o ali por mais uma semana e, depois, deu alta sob a severa
orientação de que melhorara, mas apenas parcialmente e que nunca se poderia
prever quando os surtos retornariam.
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Ele não pode ter nenhum tipo de preocupação ! Todo cuidado é pouco! A saúde
mental dele é um castelo de cartas !
Suetônio
voltou ao trabalho. Não se tocou mais ao assunto melindroso das sinuosas e
derrapantes curvas de Altina. Se Simão Bacamarte descobrira, um dia, que a
loucura é um continente no mar da razão, Carabina acabava de confirmar que, em
casos específicos, pode ser também um porto.
Crato, 09/05/14
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