Certamente, nos ficou como nesgas da Monarquia esta tendência
tão brasileira de distribuir títulos honoríficos às pessoas , sem quaisquer
outros atributos agregados além do massageamento de egos e a fermentação de vaidades
por vezes adormecidas. Lembro-me ainda de uma infinidade de Coronéis da Guarda
Nacional, títulos por vezes comprados e outros tantos distribuídos entre
senhores feudais aqui do Nordeste. Empavonavam-se tanto com o galardão nossos
avós e bisavós, mesmo que à suposta patente nenhuma honra militar se lhe anexasse.
Aqui, qualquer médico, dentista, advogado imediatamente é elevado ao título de Doutor. A Diretoria da mais simples Associação
Comunitária elenca um número vultoso de cargos(
presidentes, diretores executivos, Vice-diretores, superintendentes,
tesoureiros, secretários, etc) ; uma maneira política de resolver grandes
conflitos envolvendo os mais rasteiros degraus da escada do poder. Boa parte
das Instituições Brasileiras têm por hábito distribuir , periodicamente, Prêmios, Medalhas e Troféus ; uma medida
barata , cômoda e direta de --- inflando
a auto-estima do agraciado--- corrigir injustiças , fazer política de boa
vizinhança, preparar o tráfico de influência futuro. No fundo, bem lá no fundo,
qualquer um de nós facilmente é entronado no topo máximo da profissão. É que a
vaidade humana é o mais profundo abismo da nossa alma. Não há trena ou balança
neste mundo capaz de medir e pesar a
importância que o mais simples mendigo da nossa rua se dá. Há um Príncipe
Ribamar e um Senador Epifânio dormentes em cada um de nós.
Há,
no entanto, em meio à sensibilidade
envaidecida do nosso povo, aqueles raros que têm o pé no chão e que não pegam
corda como relógio de parede. Pois vou contar duas histórias do passado,
relembrando ilustres figuras aqui do
Cariri que terminaram engolidas
pela voracidade do tempo. Espero que adociquem um pouco o fim de semana de cada
um de vocês.
A
primeira envolve uma figura queridíssima em toda região e que fez vida política
no Potengi, por muitos e muitos anos. Chamava-se Luiz Gonzaga Alconforado, mas era conhecido por todos pelo
dulcíssimo apelido de LUZIM. É o pai de um renomado Cardiologista da nossa
terra : Dr. Orestes Guedes. Sério, digno, probo, orador inspirado, nosso
personagem é de uma estirpe de políticos que não mais existe; desses que nunca
se molhariam em qualquer Cachoeira. Seu Luzim estudou aqui no Crato, no Colégio
Diocesano e , na época, a conclusão da 4ª. Série Ginasial, que hoje representa
o término do Ensino Fundamental , era
motivo de uma Festa de Formatura de grandes proporções. Quem finalizava o
Curso, na época, recebia inclusive um Título : “Bacharel em Letras”. Após a
festa de conclusão, devidamente intitulado, seu Luzim foi passar as férias de
final de ano no Potengi e receberam-no com festas, orgulhosos do desempenho do
parente. O próprio Seu Luzim contava a história, com a sisudez e o bom humor
que lhe acompanharam toda trajetória,: lá chegou vaidoso e serelepe com tantas
honrarias. Lá para o meio do festa, seu avô, agricultor eirado e homem simples do campo, empossado de todo
pragmatismo que as dificuldades do dia a dia lhe foram proporcionando, resolveu,
o velho . saber mais detalhes das culminâncias que o neto tinha alcançado.
---
Meu filho, você é doutor mesmo de quê ?
Luzim
empertigou o peito e impávido respondeu:
---
Sou Bacharel em Letras, vovô !
---
Ah, já sei ! --Fitou-o o velho com olhar tranqüilo -- você agora vai receitar o povo , passar
meizinha e encanar braço.
---
Não, vovô ! Não sou médico , não ! Sou Bacharel em Letras !
---
Ah, Luzim, já sei, agora você vai celebrar missa, casar e batizar!
---
Vovô, não sou padre, não ! Sou Bacharel em Letras !
---
Ah, compreendi ! – Saltou o avô. Você agora vai soltar gente da cadeia, lavrar
petição , tomar partido em questão de
terra e briga de marido e mulher!
---
Não , vovô, nada disso, não sou advogado, não ! Sou Bacharel em Letras !
O
velho, então, impacientou-se e feito o diagnóstico, providenciou o esporro:
---
Bacharel em Letras ! Você não fique aí cagando goma , não, seu moleque ! Você
num é porra nenhuma, tá ainda como peito de homem: não tem serventia prá nada!
Vá estudar que esse tal de Bacharel em Letras é uma formatura muito da mucufa !
Tome tento, menino !
A
outra história envolve um grande professor cratense : José Fernandes Ribeiro
Castro. Conterrâneo do nosso Patativa, o mestre veio ensinar no Colégio
Diocesano nos anos 40 e se tornou o primeiro professor de Educação Física do
Cariri e um dos primeiros do Ceará. Segundo o HD do Cariri, Huberto Cabral, Fernandes fez-se o primeiro
Diretor da Liga Cratense de Desportos. Vaidoso, vestia-se no mais fino linho e
perfumava-se como um Dândi e terminou casando numa das mais tradicionais famílias
da região: com uma filha do Dr. Antonio Teles.
Um dia, nosso gentleman invadiu a Livraria Católica de propriedade de
dois outros amigos professores: Zé do Vale e Vieirinha e parecia radiante. Trazia
na mão um telegrama do Governo do Estado, informando-o da boa
nova : acabava de ser nomeado para um cargo de nome pomposo : Inspetor de Ensino. Os colegas
prontamente o parabenizaram pela conquista, alguns mais desconfiados julgaram
que ali haveria interferência política por parte do sogro que era Deputado
Federal. Depois das tapinhas nas costas e da epidemia de congratulações, nosso
mestre dirigiu-se diretamente a um barnabé antigo , Quinco Pinheiro, que , em
meio à enxurrada de cumprimentos,
terminou-se sabendo já ter assumido a importantíssima função, em anos passados.
---
E aí, Quinco ? Quanto levo, meu amigo ? Qual é o salário que se esconde por
trás de um Inspetor de Ensino ? --- Quis
saber Fernandes.
----
F ernandes, rapaz. Esse cargo que você vai assumir é importantíssimo. Toda
solenidade na região você vai ser imediatamente lembrado. Em todo comício você
sobe no palanque do Governo. As Escolas vão a todo momento pedir sua
interveniência junto ao estado para resolver suas demandas. É ótimo! Só tem um
probleminha: É cargo de alta relevância,
mas não remunerado!
José
Fernandes, decepcionado, ainda perguntou umas três vezes, para ter certeza:
---Como?
Como? Como? Só firula? Não tem dinheiro nesse negócio , não, é ?
Calmamente dobrou o telegrama nomeatório e o rasgou,
pedacinho por pedacinho. Depois, jogou a pedaceira no cesto do lixo e
proclamou:
---
Acabo de ser demitido por justa causa !
Terminei
aprendendo. Diante dos elogios dos amigos, dos prêmios auferidos e dos títulos
que vão caindo nas nossas mãos vida afora, refreio todo o empavona mento fácil
, o orgulho besta e a vaidade contagiosa. Sei que não passo de um simples e
reles Bacharel em Letras.
J. Flávio Vieira
6 comentários:
E este homem poderia querer mais do que esta suprema honra de ser bacharel naquilo sem a qual não posso nem começar para queixar-se do pouco quando tanto ele é. Ah! Seu Luzim! Aquele homem volumoso, sentado na cadeira de balanço a falar como eterno líder da cidade. E Zé Fernandes (Não esquecer que o velho Filé, era Filemon Fernandes Telles) era tão clean que fio algum de cabelos soltava-se do seu penteado lisamente para trás. Sapatos plumados como piso de gato.
Eita, Socorro, vc conhece todos os personagens, sua danada !
O quéisso Zé, tá me desconhecendo!
Delícia, delícia! Crônica repassada de um humor fino e irônico que faria inveja a Millòr Fernandes!
Bastinha Job
Virou conferência. Eita coisa boa!
Tô aqui morrendo de rir.
Abraço todos.
Ei Zé,
Pois rapaz , imaginei que fosse Socorro. mas ela tava conhecendo os personagens demais, né? O velho Luzim era uma graça e lembro tb do zé fernandes lá pela Livraria. Abraço e perdoe pela ilusáo de ótica...
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