por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Carta ao Patativa do Assaré - José do Vale Pinheiro Feitosa

Amigo Patativa, aqui no miolo da ritmada passarela do samba, um espetáculo de encher todos os espaços, pois não foi que me danei a pensar em ti. Naqueles idos dos 75, quando nosso amigo comum, Dr. Mário Dias, o trouxe para o Hospital São Francisco de Assis para tratar do teu problema ortopédico.

A Marquês de Sapucaia, onde as escolas de samba desfilam, é quase vizinha do São Francisco de Assis. Hoje as escolas são tão poderosas quanto as extravagâncias de efeitos especiais do cinema de Hollywood. Mas o velho hospital sucumbiu. A Universidade Federal do Rio de Janeiro não sabe o que fazer com aquele prédio, hoje decadente e se destruindo ao abandono.

Lembras-te daquelas rodadas de conversa e poesia em volta do teu leito de hospital? Eu nunca esqueci e quem por ela passou também não. Estudantes de medicina e enfermagem, professores que até bem pouco nem sabiam quem tu eras. E tu tão pequeninho, já com a pele marcada por vincas, um olho sem luz e uma voz lamentosa a exuberar os sertões.

É isso mesmo meu querido amigo, foi no ensurdecimento do desfile das Escolas Campeãs, que me reencontrei contigo. Relembrando nosso chão em transformação, o tempo a correr e esta enorme discrepância que se juntou na história do nosso tempo. Assim como o poder de teu pensamento e tua voz plangente; feito o gigantismo de tuas idéias poéticas e este teu corpo baixo de sertanejo empobrecido de governo e sociedade.

Pois eu sei que tu poderias bem me aparecer exatamente ali, naquele território onde por último nos encontramos. Não me esqueço da tua caneta titubeante, como a sofreguidão de analfabeto a assinar uma escritura doando tudo que tem para a humanidade. Não me esqueço de ter recebido exatamente aquela genialidade do J. de Figueiredo Filho publicando teus poemas. Acho que foi a primeira publicação de tuas declamações.

E tu escreveste assim: “Ao amigo José do Vale Pinheiro Feitosa a amizade do Patativa, Rio de Janeiro, 30 -1 – 75”. A promessa de amizade muito me honra, mas no teu jeito de encantar, uma missão deitou-me e espinhou todas as horas da vida para a realidade na qual nos atolamos: A fome é fera homicida/ Destrói a nossa matéria / E elimina a nossa vida,./ De tudo quanto é miséria,/ A fome tem uma dose, / É mãe da tuberculose / E da sepultura irmã: / Provoca tanta anarquia / Que o devoto contraria / A oração da manhã.

E no coração do samba em decibéis de audiência, a minha mente resolveu te prestar conta do que fui como médico. A primeira coisa, velho amigo, não foi nada do que dois idiotas escreveram para detratar-me como um personagem sem visibilidade na história da saúde pública brasileira.

Pois depois das nossas conversas eu estava numa favela combatendo a fome, a tuberculose e aquelas epidemias de vírus e diarréia que destruíam a vida de adultos e crianças. Meu velho amigo eu não esmoreci. Fui corajoso como tu fostes não só em teus poemas, mas nas leiras de teu plantio. Fui para a luta política para criar um sistema público universal de saúde. Andei o Brasil todinho de cabo a rabo para ajudar a administração pública de estados e municípios.

E quando presto minhas contas a você, quando juntos passamos horas e eu estava no último ano para me formar em medicina e nós querendo fazer mais do que tínhamos. Mas fizemos. Encontrar a exuberância da tua memória, recitando de cor toda a tua criação. Aquele radinho de pilha que nosso parco salário de iniciante serviu para musicar tuas horas de tédio naquele leito. Aquela carta que a Tereza tão carinhosamente escreveu enquanto ditavas para divulgar para a rádio MEC, que tinha um programa aos sábados sobre folclores, que tu estavas ali não muito distante dos estúdios dela.

Então, a força, a coragem e poder do homem estão naquele desfile das escolas de samba e foi por isso mesmo que a tua presença não me largou o tempo todo. Ambos são da mesma matéria da história brasileira

Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 2012.

José do Vale Pinheiro Feitosa

3 comentários:

socorro moreira disse...

A gente tira o chapeú para Patativa e para Zé do Vale.

Stela disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Stela disse...

é tão começar o dia lendo um texto assim tão cheio de pulsar amoroso e poético. Zé do Vale falou com o coração sem desfazer-se da sua lucidez de cidadão pensante e responsável. Louva Patativa do Assaré, o poeta, o homem trabalhador rural, o cidadão que tinha o SERTÃO dentro de si.
É uma dádiva ler/reconhecer Patativa, é uma felicidade ler/reconhecer Zé do Vale.