Amigo Patativa, aqui no miolo da ritmada passarela do samba, um espetáculo de encher todos os espaços, pois não foi que me danei a pensar em ti. Naqueles idos dos 75, quando nosso amigo comum, Dr. Mário Dias, o trouxe para o Hospital São Francisco de Assis para tratar do teu problema ortopédico.
A Marquês de Sapucaia, onde as escolas de samba desfilam, é quase vizinha do São Francisco de Assis. Hoje as escolas são tão poderosas quanto as extravagâncias de efeitos especiais do cinema de Hollywood. Mas o velho hospital sucumbiu. A Universidade Federal do Rio de Janeiro não sabe o que fazer com aquele prédio, hoje decadente e se destruindo ao abandono.
Lembras-te daquelas rodadas de conversa e poesia em volta do teu leito de hospital? Eu nunca esqueci e quem por ela passou também não. Estudantes de medicina e enfermagem, professores que até bem pouco nem sabiam quem tu eras. E tu tão pequeninho, já com a pele marcada por vincas, um olho sem luz e uma voz lamentosa a exuberar os sertões.
É isso mesmo meu querido amigo, foi no ensurdecimento do desfile das Escolas Campeãs, que me reencontrei contigo. Relembrando nosso chão em transformação, o tempo a correr e esta enorme discrepância que se juntou na história do nosso tempo. Assim como o poder de teu pensamento e tua voz plangente; feito o gigantismo de tuas idéias poéticas e este teu corpo baixo de sertanejo empobrecido de governo e sociedade.
Pois eu sei que tu poderias bem me aparecer exatamente ali, naquele território onde por último nos encontramos. Não me esqueço da tua caneta titubeante, como a sofreguidão de analfabeto a assinar uma escritura doando tudo que tem para a humanidade. Não me esqueço de ter recebido exatamente aquela genialidade do J. de Figueiredo Filho publicando teus poemas. Acho que foi a primeira publicação de tuas declamações.
E tu escreveste assim: “Ao amigo José do Vale Pinheiro Feitosa a amizade do Patativa, Rio de Janeiro, 30 -1 – 75”. A promessa de amizade muito me honra, mas no teu jeito de encantar, uma missão deitou-me e espinhou todas as horas da vida para a realidade na qual nos atolamos: A fome é fera homicida/ Destrói a nossa matéria / E elimina a nossa vida,./ De tudo quanto é miséria,/ A fome tem uma dose, / É mãe da tuberculose / E da sepultura irmã: / Provoca tanta anarquia / Que o devoto contraria / A oração da manhã.
E no coração do samba em decibéis de audiência, a minha mente resolveu te prestar conta do que fui como médico. A primeira coisa, velho amigo, não foi nada do que dois idiotas escreveram para detratar-me como um personagem sem visibilidade na história da saúde pública brasileira.
Pois depois das nossas conversas eu estava numa favela combatendo a fome, a tuberculose e aquelas epidemias de vírus e diarréia que destruíam a vida de adultos e crianças. Meu velho amigo eu não esmoreci. Fui corajoso como tu fostes não só em teus poemas, mas nas leiras de teu plantio. Fui para a luta política para criar um sistema público universal de saúde. Andei o Brasil todinho de cabo a rabo para ajudar a administração pública de estados e municípios.
E quando presto minhas contas a você, quando juntos passamos horas e eu estava no último ano para me formar em medicina e nós querendo fazer mais do que tínhamos. Mas fizemos. Encontrar a exuberância da tua memória, recitando de cor toda a tua criação. Aquele radinho de pilha que nosso parco salário de iniciante serviu para musicar tuas horas de tédio naquele leito. Aquela carta que a Tereza tão carinhosamente escreveu enquanto ditavas para divulgar para a rádio MEC, que tinha um programa aos sábados sobre folclores, que tu estavas ali não muito distante dos estúdios dela.
Então, a força, a coragem e poder do homem estão naquele desfile das escolas de samba e foi por isso mesmo que a tua presença não me largou o tempo todo. Ambos são da mesma matéria da história brasileira
Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 2012.
José do Vale Pinheiro Feitosa
3 comentários:
A gente tira o chapeú para Patativa e para Zé do Vale.
é tão começar o dia lendo um texto assim tão cheio de pulsar amoroso e poético. Zé do Vale falou com o coração sem desfazer-se da sua lucidez de cidadão pensante e responsável. Louva Patativa do Assaré, o poeta, o homem trabalhador rural, o cidadão que tinha o SERTÃO dentro de si.
É uma dádiva ler/reconhecer Patativa, é uma felicidade ler/reconhecer Zé do Vale.
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