por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



domingo, 30 de outubro de 2011

Cinderela e a carroceria cheia José do Vale Pinheiro Feitosa


Cinderela, com uma sacola de plástico, corria desesperada para pegar carona na carroceria do caminhão. Precisava aproveitar os momentos finais da feira para comprar alguns mantimentos que faltavam em casa. O problema da moça é que o cachorro de estimação corria atrás dela latindo e a carroceria estava cheia de gente com as mesmas pretensões que ela.
Moça recatada e artística gostava de versejar ao som da viola, Cinderela teria que se acomodar no espaço inexistente de tantos outros corpos. Alguns corpos que jamais Cinderela gostaria de intimidade. Como o corpo de um sujeito esperto conforme herdou do pai, sujeito chamado de Brasília, mas que dizem teria nome bíblico. Pobre da Daniela ficou logo no aperto da área de influência do venha a nós e a vosso reino nada.
Não é que fosse incomodada fisicamente pelo Brasília, ela foi sendo seduzida com promessas amarelas da solução das dificuldades da vida e a pobre da Cinderela foi se afastando de si mesma. E isso não durou muito no aperto da carroceria cheia. O cachorro da família ainda corria atrás da carroça e Cinderela já estava no jogo do sujeito que dizem tem nome bíblico.
Este ainda perguntou para a moça a razão daquele cachorro tanto ser persistente. Ela explicou-lhe que era o tipo teimoso e tinhoso de animal que sempre teria de dar a última latida. Só quando não houvesse mais cachorro noutros terreiros é que ele se calaria e voltaria para casa. Para o sossego do canto da casa. Dizem que o cachorro nunca parou de ladrar, que a razão estava no cão maior que seguia na carroceria. Dizem que o cão ladrou léguas de viagens, até esmorecer de língua para fora sobre o pó da estrada.
Desta viagem em carroça cheia, restou em Cinderela um vazio existencial. Ela não mais encontrava a sua imagem no espelho. Mesmo os temores do que aquilo significava, pois nem na água seu reflexo aparecia, Cinderela passou a fazer um canto quase gritado, um alternância de desespero e excesso de amor próprio, um abismo entre o sentimento de total isolamento e o exacerbado de que possuía as últimas das verdades. Aquelas verdades que são a antevéspera do juízo final.
Cinderela não é uma pobre coitada, tem o dom de ferir-se e de ferir aos outros com lâminas tão afiadas que as dores não surgem de logo, só depois é que se toma conta de que a ferida é grande. Mas Cinderela guardou em si a beleza que possuía antes de subir naquela carroceria cheia de gente e tomar assento na vizinhança daquele senhorzinho.
Cinderela não era o depósito das penas de ninguém. Ela era e continua sendo o extremado do amor pelo outro. Cinderela é alvo do amor por sua alma artística que traduz sua integridade e que todos desejam de volta ao regato de sua criatividade. Que o regato flua sereno como Cinderela procura ser. Assim como “um fio d´água na serra que encanta mais que o mar”.

Um comentário:

socorro moreira disse...

Cinderela é um dos nossos arquétipos femininos, de nossa maior contextualização.
Impossível a não identificação.
Ora sacola de plástico, ora bolsa de grife.
Os espelhos são nossas madrastas.
-Um belo dia compreendemos a flor do narciso, e rompemos o círculo.
O misturar-se não infecta a essência.Temos parte com a luz.
O encanto é um fio d"água na serra...uma fresta de luar, numa rua escura. Não importa se no futuro...
E eu vou cantar!
_ Adoro a música em evocação!
Guantanamera !