por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sábado, 23 de julho de 2011

A FRESTA - José Flávio Vieira




– Não se esqueça de pôr a janela dentro da minha mala, minha filha! Aquela frase, dita de supetão, turvou o ânimo de toda a família. D. Mafalda mostrara-se sempre um exemplo de lucidez. Viúva precoce, conduzira toda récua de filhos com cabresto curto. A duras penas, com o minguado salário de professora, realizara o milagre dos pães e dos peixes. Nada faltou aos meninos do essencial e, vez por outra, permitia-lhes um ou outro artigo mais chique, pois entendia perfeitamente que é do supérfluo que se alimentam os sonhos. Seu esforço e sua rédea apertada surtiram o efeito imaginado, aos poucos se deparou com os rebentos encaminhados, quase todos formados e tocando a vida sem maiores atropelos. Todos reconheciam o árduo trabalho da mãe que lhes dedicou o melhor de seus dias e retribuíam-lhe com o conforto, o afeto e o carinho tão necessários à velhice. D. Mafalda morava na antiga casa da família apenas com uma agregada de muitos anos e que praticamente já fazia parte do clã. Apesar da distância, os filhos ainda lhe eram ligados umbilicalmente. As rugas e as cãs que lhe foram ofertando os anos proporcionaram-lhe um ar tranquilo de monge tibetano. Todos os problemas envolvendo netos, bisnetos, noras, genros e os próprios filhos invariavelmente vinham bater à porta da velha senhora, e seus conselhos não só abriam caminhos, desarmavam espíritos, como adquiriam força de lei. Ao quebrar, no entanto, o cabo da boa esperança, aí por volta da oitava década, o peso da idade começou a aparecer mais perceptível. D. Mafalda apresentava lapsos frequentes de memória, muitas vezes já não reconhecia parentes mais próximos. A velha mucama relatava: ela andava “tresvariando” e conversando “arisias”. Os filhos preocuparam-se de início, levaram-na à consulta com geriatra, mas aos poucos perceberam que a seiva que nutria o caule de D. Mafalda começava a secar e aqueles lapsos significavam a queda das primeiras folhas, o ressequimento dos primeiros galhos que antecediam o fenecimento da frondosa árvore. Reunidos os filhos, optaram por deixá-la morando no seu próprio cantinho e contrataram duas enfermeiras para acompanharem o tratamento da mãe, uma vez que a velha empregada, artrítica, já não possuía forças para cuidados mais continuados.
Poucos meses depois, a companheira inseparável de D. Mafalda, subitamente, fez a viagem derradeira. Dormiu na terra e acordou no céu, conforme se comentou no velório. A perda da amiga de luta abateu intensamente a inabalável matrona. Sentiu quase como se perdesse o esposo novamente. Nos dias mais difíceis, a secretária fora de tudo: irmã, colega, confidente e ajudara na criação dos meninos como se os tivesse dado à luz. Esta nova perda embotou visivelmente o ânimo de D. Mafalda. A partir daí parece ter se acentuado seu processo de demência. Nova reunião e os filhos acharam mais sensato transferi-la para a casa da sua primogênita. Leocádia, após o divórcio, morava praticamente só, pois a filharada já ganhara o mundo e tinha vida própria. A aterradora frase de D. Mafalda soara justamente no momento em que Leocádia arrumava os pertences da mãe, providenciando a transferência planejada.
– Não se esqueça de pôr a janela dentro da minha mala, minha filha!
Passado o primeiro estupor (Meu Deus, mamãe agora pirou de vez!), os parentes começaram a refletir sobre a frase pronunciada por Mafalda. Enquanto arrumava os velhos guardados, acumulados ao longo de tantos anos, cada um embebido de vida e de passado, Leocádia começou a pensar no pedido da mãe. Que bom seria se se pudesse levar a janela da nossa casinha, a cada mudança que se fizesse na vida! Bastava colocá-la em uma das paredes da nova residência e teríamos fresta aberta para o éden. Ao sentir saudades dos antigos vizinhos, era suficiente apenas se postar diante da janela mágica e perguntá-los pelas novidades. À noite, quando o silêncio baixasse sobre a cidade, seria possível conversar com os conhecidos fantasmas do casarão antigo, ao se aproximar da janela que trouxemos na mala. O bulício da rua sagrada da nossa infância estaria sempre ao nosso alcance se pudéssemos carregar aquele velho rasgão que nos uniria eternamente ao passado. Além de tudo, furtada a janela, qualquer dissabor que nos turvasse a alma, saltaríamos para o quintal da nossa juventude e nos banharíamos nos seus indevassáveis mistérios: a goiabeira confidente, o velocípede veloz, a tina com seus segredos aquáticos. Depois, voltado o enlevo, ajoelharíamos na úmida areia e colheríamos todos os cacos dos nossos sonhos partidos, das nossas ilusões fragmentadas, da nossa felicidade espedaçada nas calçadas da realidade. Teríamos então todo o tempo do mundo para tentar refazer o quebra-cabeça. Quando assim nos aprouvesse, nos seria dado o direito de fechar a janela e mergulhar no presente, mas cuidadosamente deixaríamos a tranca frouxa, para qualquer emergência mais premente.
É, pensou Leocádia com seus cacarecos, D. Mafalda talvez ainda esteja mais lúcida do que pensávamos. No auge do delírio talvez tenha nos legado sua mais sábia lição: qualquer mudança que empreendermos na existência, nunca se deve esquecer de colocar na mala uma janela. É que as portas da vida estão sempre à frente, mas a felicidade, a alegria, o prazer estão nas pequenas janelas que por acaso tivermos a capacidade de escancarar para o pomar da nossa juventude e da nossa infância.

J.Flávio Vieira









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