Uma crônica politicamente correta é uma contradição. Acontece que a crônica é filiada ao tempo do cronista, é cheia de preconceitos, de julgamentos e conclusões que certamente serão superadas. Por isso as crônicas tendem a ser datadas. Fora de sua época perdem o fio do tempo. Como no estacionamento de um hospital, hoje à tarde, aqui no Rio de Janeiro.
Hospital ultramoderno, só atende particular e planos de saúde de primeira linha. Na sua portaria o anúncio que é uma unidade "acreditada por padrões internacionais". Tem padrão de qualidade atestado pela Joint Comission lá do centro da boa imagem. Como aquele antigo samba, tem ar-condicionado para os dias de calor, televisão de plasma, recepcionistas com paletó feitos os leões de chácara de boate. Pense num lugar para você exibir numa roda da sociedade. Agora se pode falar da parafernália de monitores que controlam tudo, dos respiradores com tantos sensores que só a NASA possui para os seus homens na lua. Também, quando no CTI, os nossos corpos estão como os astronautas: na artificialidade total. Quando o sujeito, satisfeito com o atendimento qualificado, for buscar seu parente agora feito cadáver, entenderá que o morgue de trinta metros quadrados tem mais valor simbólico que os milhares de metros de todo o restante do hospital.
Então estou no estacionamento. O meu foi grátis. Médico tem passe livre. Pego o carro e me encaminho para a saída. Tem uma fila de três carros à espera para sair. Não tem motivo para aquela fila e examino o que ocorre.
Um Honda, Civic, com pintura brilhando no cair da tarde. O carro pára bem em frente à cancela automática do estacionamento. Ao invés de passar o cartão, a motorista desce e bate a porta. Era uma mulher alta, magra, com os cabelos curtos, óculos escuros desnecessários naquela luminosidade, empertigada e com ar acicatado. Toda a fila de espera é um mero detalhe. Ela esqueceu-se de pagar o estacionamento, larga o carro e se dirige ao caixa. Os outros que a esperem. Não está nem aí para o que pensam.
Meu olhar de poucos amigos a acompanhou por todo o trajeto. Com movimentos resolutos me deixou na síndrome da cidade grande: para que tanta pressa? Era aquele andar pisando sobre a gentinha que incomodava os que esperavam. Entrou no caixa, fez as transações de praxe e retornou em direção ao seu carro. Veio com o mesmo porte, a mesma indiferença e chegou ao seu carro.
Meteu a mão na maçaneta e nada. O carro, para sorte deste sujeito despeitado que lhes escreve, tinha aqueles alarmes que trava tão logo se feche a porta. Ela não se deu por achado e retornou ao caixa em busca da suposta chave esquecida no balcão. Mas a chave, estava bem penduradinha na ignição do carrinho dela. E o carrinho, adivinhem, só abriria com chaveiro. A fila parada e ela cercada de homens com ar abobalhado por nada poder fazer a não ser instintivamente sair puxando todas as maçanetas das quatro portas do veículo.
Não teve outro modo. Inverteram a mão e os que esperavam saíram pela entrada. Eu fui o primeiro a ser solto e animado com o enredo. Afinal não é todos os dias que se vive uma cena destas. Nem todos os dias que nosso espírito anda por vinganças tão mesquinhas.
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