por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Memórias da Panela Abandonada - Por Antonio Barbosa Tavares


Num dia invernoso, com clarões de sol primaveril permeados por uns fios de vento, viagem ao Portugal-aldeão que alberga ternas e saudosas venturas da infância e também as constristadas memórias de um tempo irrecuperável. Fui com minha mãe e meus irmãos ao seu lugar de nascença visitar os dois únicos tios que ainda restam nas suas casas graníticas alcantiladas nas serranias de um ignoto lugarejo nas austeras serranias Sevenses.
De uma outrora farta casa de lavrador, com longos alpendres e criadagem, pertença de meus avôs-maternos, cujas pedras couberam em herança a um genro que as retirou uma a uma, restavam agora apenas a eira, um enorme lajedo recoberto de musgos com tufos de ervas e silvas que emergiam por entre as fissuras das pedras.
Minha mãe não conteve uma exclamação meia sussurada e pesarosa provinda das recordações da juventude: “ Eram aqui nesta eira os bailaricos do João do Esquiero com a sua concertina “, comovida desatou a nomear todas as moçoilas do lugar e do seu tempo e mais três que ocorriam ao local do bailarico de aldeolas vizinhas, donairosas nas suas roupas domingueiras com seus tamancos pretos lustrosos.
Eram a Celeste do Souto, a Aida de Riba, a Maria da Eira , a Leopoldina, a Deolinda do Esquieiro, a Maria do Andoreira e a Esmeralda da Cancela.
Os rapagões, calcorreavam a serra desde as margens do Rio Vouga com seus coletes perfilados a rigor, casaco sobre os ombros, por carreiros entre pinhais frondosos e carvalhais ao encontro das suas eleitas deusas.
Ocorreu-me que ali a três passos morava um casal de velhotes “orfãos de filhos”, octagenários nos tempos da minha infância, o ti António era um homem baixote, rosto de lua-cheia, bigode farfalhudo e unas exíguas franjas de cabelo a contornarem uma calvície rigorosamente circular, com seu chapéu puído de aba larga de fita negra imbuída de suor e pó, homem de poucas e mansas palavras, alma cerzida na agrura dos tojeiros do monte nas rudes fainas agrícolas do arado e charrua. A Ti Deolinda era uma mulher vivinha , de lenço amarrado da cabeça ao queixo e língua solta para pregar uma piada, esguia e conversadeira , porém de uma poupança que roçava a miséria.

*
Não resisti a espiolhar a casa em ruínas num estado de violenta degradação, nem um único vidro ou memória deste nas janelas. Uns fiapos de madeira suspensos do caixilho apodrecido, testemunhavam a voracidade e a incúria dos tempo..Entrei no casebre, avancei com cautela redobrada sobre o soalho ondulante a ranger, pleno de frinchas, e deparei com uma panela de ferro bojuda de três pés, esquecida sobre um monte de cinzas, porventura ali abandonada há uns bons decénios.
O meu irmão, sabendo do encanto que eu manifestara pela panela e que ao tentar tocar-lhe poderia o soalho ruir e eu acabar alcavalitado e ferido sobre o desmoronado curral dos porcos, avançou ,lesto e seguro pelos recantos da cozinha melhor escorada, e colheu a dita.
Como sabia de fonte segura que os falecidos proprietários não possuíam herdeiros, e ninguém me processaria pelo furto, apoderei-me da panela e escrevi-lhe algumas das memórias, se para tanto o engenho me ajudare a reconstituir os factos históricos daqueles arredios tempos , tal como ela me segredou nos seus próprios termos : “Devo ter sido mercada em reis, não sei exactamente quantos, no dia dezanove de Outubro mil oitocentos e noventa e três e fundida numa das poucas usinas existentes do Distrito de Aveiro. Dom Carlos I assumira o trono rigorosamente nove anos antes da minha compra, e governaria atribuladamente dezanove, até ser ,violenta e trágicamente, despojado da realeza.
Como dizia , sou levada a crer ter sido mercadejada porventura ,em Vale de Cambra, pois não constam que existissem lojas de ferragens e objectos similares na pacatíssima vila de Server do Vouga.
Ainda me recordo da longa jornada empreendida a pé por carreirinhos entre as altaneiras serranias. Vim às costas de meu amo num saco de serapilheira misturada com um podão uma foice e cordas avulsas, enquanto a esposa seguia atrás com dois bacorinhos que levaram toda a jornada a rosnar, presos por um atilho aos artelhos, carinhosamente sacudidos pela folhagem de um ramo de eucalipto”

*Antonio B.Tavares, ilustre escritor português, reside no Canadá . Um amigo, desde os idos de 1998.
Esperamos tê-lo como futuro colaborador.
Aliás, já o temos, e que seja bem-vindo!
Abraço carinhoso, Antonio !

Um comentário:

socorro moreira disse...

Grande Antonio !
Bem-vindo à prosa poética dos brasileiros !
Sua linguagem pode ser diferente da nossa, mas os sentimentos são empáticos !

Abraços.