Ana,
o milagre - Dr. Demóstenes Ribeiro (*)
Agora, que estás a adormecer, lembro de tudo. Quando eu te dei
a comunhão, o mundo mudou para sempre e aconteceu o milagre. Enfim,
me convenci da bondade divina e fiz uma prece. Até então, só havia
a verdade dos outros e minhas certezas eram da boca pra fora, mas um
clarão iluminou o meu caminho e, comecei a viver.
Sabes que eu vim de uma família pobre, onde o padre ainda traz
prestígio e ascensão social. Por isso, quase menino, escolheram a
minha vocação e me mandaram pro seminário. Sofri em silêncio
tantas noites insones e escondi na barba grisalha a angústia de
representar esse papel.
Em nome de Deus – acho que concordas – se faz a hipocrisia
das religiões. Mas, não quebrei os votos e cheguei às bodas de
prata sacerdotais. E depois, transferido para a capital, naquela
paróquia simples, eu te encontrei.
E aí, houve o milagre. À tua espera, o meu coração batia
mais forte quando cumprimentava as pessoas na calçada da igreja
antes da celebração dominical. Contigo, tornou-se diferente o
aperto de mão e era outro, o olhar. Não mais, um tempo de chuva e
fez-se mais que sagrado, o instante da comunhão.
Um dia, conversamos brevemente antes da missa. Tu me disseste
quem eras e eu te convidei para trabalhar conosco. Corpo e alma,
desde esse dia nunca mais nos separamos. Afinal, trouxeste-me a luz
quando a noite principiava; ressurreição, quando a morte já estava
em mim; de novo a mocidade, quando eu já me sentia um ancião.
Eu sei que não esqueceste: após abandonar a batina e tudo o
mais, nós saímos sem destino e andamos à beira-mar. Ao anoitecer,
avistamos a igrejinha dos pescadores, entramos sem pensar e
assistimos à missa. Éramos dois estranhos no meio daquela gente.
Quando o padre falou que saudássemos uns aos outros, eu te abracei e
te beijei demoradamente, como alguém profundamente apaixonado. Por
um momento, o espanto de todos e depois a salva de palmas.
Logo, mudamos de bairro. Eu passei a dar aulas, caminhamos com
os mais fracos, e mais humildes, tentando traduzir no dia-a-dia a
vontade do Pai. De certa forma, introjetamos Rute: “aonde fores, eu
irei; e onde dormires, dormirei. O teu povo será o meu povo e o teu
Deus, o meu Deus!”
O descanso na rede, Cabral, Bandeira, Drummond...
Cinema, literatura e, às vezes, me provocavas com uma estória
picante... Um dia, ganhamos um prêmio e conhecemos a Europa.
Parecíamos mochileiros adolescentes naqueles trens e albergues. A
nostalgia em Lisboa, a bailarina andaluza... A Mona Lisa
sorriu pra mim e ficaste enciumada. E eu me lembro que em Veneza, um
solo de violino tocou profundamente a tua alma.
Senhor, por que a deixaste adormecer? Acorda, Ana! Os fogos
explodem na praia, é Ano Novo. Um outro mundo é possível e a vida
é bela. O espírito de Deus move-se sobre as águas e eu não quero
voltar à escuridão!
(*) Médico-cardiologista
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