Só me faltava esse enfarte e os olhos dela. Eu já os vira
antes, lembrei do que não devia e revivi minha maldição. Pois, até
68 tudo era sucesso. O mar e as mulheres, Simonal e as chacretes na
TV, até o telefone tocar e ter que me apresentar no quartel. Acabou
a boa vida e eu, que só navegava e me divertia mundo afora, recebi
em silêncio outra missão:
“- Precisamos de você. A coisa é séria, o perigo ronda o
país. Eles estão em toda a parte. Nos sindicatos, na Igreja, nas
forças armadas... Se não agirmos, destruirão o Brasil e a
liberdade. Nós já lhe matriculamos na medicina.
- Na medicina, e o vestibular?
- Não faça perguntas. É a segurança nacional. Estão
recrutando universitários. Mude a aparência, identifique os cabeças
e nos informe. Na hora H, saberemos que é um dos nossos.”
Simpático e discreto, eu gostava do curso e da moçada, tinha
paixão por ginecologia e obstetrícia, e até ganhei o apelido de
G.O. Um dia, fui chamado de novo:
“ – Você terá que sumir, estão desconfiando, temos
informes. Esqueça a faculdade. Vamos apertar essa canalha no
Nordeste.”
E foi assim que, na equipe de interrogatório, eu me tornei o
Anatomista. Às vezes, me dava pena aqueles jovens, iludidos com a
revolução cubana e usados no delírio de uns velhos porra-loucas,
sem saber. Porém, eu aplicava direitinho o choque elétrico. Alguns,
logo abriam o bico; outros iam pro afogamento, pro pau-de-arara ou
pra cadeira-do-dragão.
Certo dia, em Recife, trouxeram uma mulher bonita, talvez
ligada ao Lamarca. Já estava desfigurada, quase sem luz nos olhos.
Anselmo estava presente. Já haviam assassinado o Marighela, e o
Fleury veio de São Paulo colher mais informações. Com ele, a morte
entrou na sala. Urina, sangue, fezes, o grito lancinante e
agoniado... Ela morreu e não entregou o capitão.
Ninguém concorda comigo, mas a gente não se navega. Cumpri
ordens, fiz o trabalho sujo e fiquei sem nada. Mas conheço quem se
deu bem, gente que ficou milionária, virou nome de rua ou foi
reitor. Esse é o mundo: roubo, delação e mau-caratismo geral.
Mudei de nome e hoje, pra ganhar a vida, dirijo caminhão.
Passo a noite acordado, estrada afora. Só me faltava o enfarte e, de
novo, aquele olhar. Pois a doutora não me é estranha e acho que me
reconheceu. Ela disse que amanhã iria me examinar com mais cuidado.
Não sei por que tanto passado a me mandar lembranças. Sou
mais um à deriva, entre os inúmeros sobreviventes do mal. Está
chegando o centenário da Revolução Russa. Um dia vão alterar essa
lei da anistia e o acerto de contas virá, cedo ou tarde.
Já é madrugada e, antes que me descubram, vou fugir desse
hospital pra Porto Velho ou outro lugar bem longe. Mais uma vez,
trocarei de nome. Talvez, transportar madeira. Quem sabe eu esqueça
o Anatomista e essa estória de G.O.
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Dr. Demóstenes Ribeiro - Médico Cardiologista - Fortaleza-CE
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