J. Flávio Vieira
Passados
tantos anos, as imagens se vão turvando, surpreendidas, aqui e ali, apenas pela fresta da saudade. A ausência,
antes dolorida como uma chaga aberta, foi, aos poucos , se anestesiando,
bafejada pelo bálsamo do tempo, mas a cicatriz permanece ainda sensível como um queloide. A
vida, depois do cataclismo, precisou ir tomando jeito. Recolhidos os estilhaços
do cristal esfacelado, tentamos recompor o amálgama dos dias e das horas. Restou-nos
o ranço final do caju sorvido , esse travo que lutamos para não obscurecer o dulcíssimo sabor
da polpa que o antecedeu. Afinal, a vida talvez seja exatamente isso : a
capacidade de se ir reconstruindo nosso mundo a cada dilúvio prenunciado, catando
e depositando na Arca os nossos despojos de guerra.
Fecho
os olhos e tento te imaginar nonagenário, como serias hoje. O tempo te teria
sugado todas as forças ? Manterias o vigor mínimo para apreciar os milagres da
existência ? A inexorabilidade dos dias te levaria a um estágio no reino
vegetal antes da mineralidade extrema, destino de todos nós ? Serias um
velhinho lépido, com um mínimo de dignidade, ou apenas mais um objeto de
decoração da casa ? Fecharias o ciclo da vida, retornando à outra extremidade
da infância, ou obterias o privilégio da lucidez, do bom humor e da resignação
que sempre te foram fortes aditivos
existenciais ? Desfrutarias de uma vida ou apenas de sobrevida ?
Estas
perguntas ferem-nos como um punhal, talvez porque carreguem consigo a
impossibilidade de resposta. Pesa-nos a certeza da imponderabilidade de tudo,
do amálgama perecível dos segundos, da finitude líquida e fluida dos casos ,
ocasos e acasos. Nossos sentimentos assentam seus sonhos de perenidade na amorfa e gelatinosa nuvem da impermanência. Resta-nos, tão-somente,
curtir cada vidrinho do cristal despedaçado , onde vemos refletido o divino acaso
que nos pôs juntos na mesma viagem. Ali o caquinho do teu perene bom humor e
que terminou contagiando toda a família. Acolá o fragmento do teu despojamento,
pronto a enfrentar as vicissitudes sem a seriedade que elas pretendem nos
exigir. Adiante o estilhaço da tua complacência ante o sofrimento e a perspectiva
do abismo. Ao lado o pedacinho da tua inteligência que ainda reluz como se
permanecesse imantada. Aos poucos refazemos o cristal que um dia embelezou esse
mundo com seu brilho e sua transparência. Até parece que um dia não se
esfacelou ante os arroubos do tempo. Ganha até um certo ar de perenidade,
sempiternos fragmentos ungidos pela cola da Saudade.
6 comentários:
Eis um texto que preenche tão bem a ação do comentário naquilo que ele tem de memória e que nos deixa sem condições de acrescentar algo. Mas uma coisa é certa: é muito raro um filho, como nesta postagem, falar do pai como o outro. Normalmente em nossa cultura há uma dependência e uma hierarquia que nunca se acaba. Como também é muito difícil na cultura nordestina que um filho do sexo masculino demonstre sentimento com o pai igual a tudo isso que foi lido. Normalmente a educação, a posição do orientador distancia a emoção através de tantas normas e disciplinas que a resultante é a frieza de carinho entre pai e filho pelo menos na aparência. Inclusive por considerar a boa técnica do escritor é interessante se observar o quanto o personagem revelado, mesmo como estilhaços do tempo, é um todo instigante e envolvente que constrói a própria expressão do autor. E ao renascer nesta expressão demonstra claramente a continuidade conceitual entre o finito e o infinito.
Eis um texto que preenche tão bem a ação do comentário naquilo que ele tem de memória e que nos deixa sem condições de acrescentar algo. Mas uma coisa é certa: é muito raro um filho, como nesta postagem, falar do pai como o outro. Normalmente em nossa cultura há uma dependência e uma hierarquia que nunca se acaba. Como também é muito difícil na cultura nordestina que um filho do sexo masculino demonstre sentimento com o pai igual a tudo isso que foi lido. Normalmente a educação, a posição do orientador distancia a emoção através de tantas normas e disciplinas que a resultante é a frieza de carinho entre pai e filho pelo menos na aparência. Inclusive por considerar a boa técnica do escritor é interessante se observar o quanto o personagem revelado, mesmo como estilhaços do tempo, é um todo instigante e envolvente que constrói a própria expressão do autor. E ao renascer nesta expressão demonstra claramente a continuidade conceitual entre o finito e o infinito.
Agradeço ao Dedé pelo comentário. Ambos somos suspeitos nesse caso. Sempre tive imensa dificuldade em escrever sobre as pessoas que me são mais próximas e queridas. Existe uma barreira natural, como se me fosse impossível expressar com a falibilidade das palavras todo o sentimento envolvido. Fico preso entre os grilhões do laudatório e do piegas. Juntar os estilhaços sempre me parece difícil e penoso.
Curti o texto com total envolvimento.
Abs, aos meus dois queridos Zé!
Caro Zé Flávio
Certa vez, quando lhe indaguei sobre um "causo" que se passou com o seu pai, você me respondeu alguma coisa como que não se sentia a vontade para falar sobre o "velho". E tinha razão. Você reuniu as belas palavras que a língua portuguesa possui para formar um dos mais belos poemas de amor filial. E com um tão alto nível de sensibilidade, que nos contagiou a todos, como se essa fosse a homenagem que gostaríamos de prestar aos nossos próprios pais. Que bela demonstração! Parabéns!
Abraço, Carlinhos e obrigado pelo comentário. Fico feliz. Este travo é grande e curti muito, seu texto, na época, justamente pela dificuldade que tenho de escrever sobre meus entes mais queridos. Abração!
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