
Era pra ser apenas mais um carnaval...
E seria assim não fosse os
descaminhos que a vida nos prepara.
Alfredo Ossian, um executivo
perfeito, parado em frente à janela da sua sala, olhava para rua
calado, inerte. Pensativo. Ora ria, ora sério, ora assoviava. Seu
jeito sisudo de ser e o seu comportamento padrão, escondia naquele
executivo, um homem carente de alegrias. Ávido de liberdade. Há
tempos não sabia o que era um carnaval. Desde quando a adolescência
se foi, ele assumiu a postura de homem sério.
Mas naquele ano a
alegria lhe parecia chegar com toda a sua plenitude. Nada que mudasse
o seu conceito sobre a festa. Afinal, o carnaval se reveste de dias
de alegria. Liberdade e alegria em conluio se refazem nos quatro dias
de festa. Mas a vida lhe exigira aquela postura.
Ninguém sabia,
mas por trás daquela cara amarrada, estava um homem que amava.
Também estava ali um homem que traía. Que se entregava às lides de
Baco quando a liberdade o permitia.
Aos poucos o som do surdo se
instalara na sua cabeça numa intermitente marcação de frevo,
insistindo em não lhe deixar pensar em outra coisa que não fosse C
A R N A – V A L... TUM-tum...TUM-tum...TUM-tum.... Nessa hora o
sangue corre mais rápido nas veias daqueles que anseiam alegria.
Corações em festa. São momentos em que a ansiedade de folião de
repente se faz presente na cabeça e o pensamento lhe remete às
velhas marchinhas tão presentes nos quatro dias de Momo....
♫ô
abre alas que eu quero passar...eu sou da Lira não posso
negar...Rosa de Ouro é quem vai Ganhar..
♫Êêêêuu fui uma
tourada em Madriii...eeee quase não volto mais aquiii...prá ver
Periii...beijar Ceciii....
Assim é que, em meio à multidão em
festa, se vê passando um bloco do eu sozinho, outro bloco do nós
juntos, e outro bloco, e outro, e outro... Avidez ambulante
procurando alegrias coletivas regadas a largos brindes no banquete
Dionisíaco. Uma parada aqui...outra ali... Nas esquinas, Nos bares e
botequins o burburinho das palavras se misturavam. As pessoas
trocavam ideias enquanto faziam planos para o reinado da folia.
Era
sábado gordo. E era fim de tarde. Destaque para o Beco das
Margaridas. Uma rua pequena onde ainda resistia o calçamento de
pedra batida e de paredes largas denunciando a idade dos casarões
que se transformaram em bares. Outrora lupanares, agora eram
ambientes perfeitos para cervejas num fim de tarde. Entre os
frequentadores do Beco das Margaridas, destacava-se Alfredo; aquela
pessoa comum, séria, calada, muito querida na empresa em que
trabalhava, onde era supervisor de vendas e coordenava uma equipe de
seis pessoas que, formalmente, o tratavam por Dr. Alfredo Ossian.
Extremamente sério quando em serviço, Alfredo adorava uma
mesa de bar e um happy hour regado à cervejotas e petiscos. Bastava
a primeira dose para desabrochar o personagem que guardava a sete
chaves. Eram momentos em que Alfredo se transformava numa pessoa
alegre, descontraída, loroteiro, gostava de piadas e gargalhava alto
sempre que algo lhe parecia engraçado.
Alfredo Ossian era casado
com Rosa Aline, uma mulher loira, alta, bonita, dada às lides de
casa. Cuidar de filhos era um passatempo. Carinhosa, porem, geniosa
ao extremo. Há tempos, Rosa reclamava e desconfiava do marido.
Inclusive, alguns rapapés já teriam sido gerados pela desconfiança
e o ciúme de uma tal Leila. Bonita, morena, solteira e frequentadora
do Beco das Margaridas.
Alfredo resolvera ir ao Beco e naquele
dia encontraria amigos no boteco de sempre. Seria mais um encontro
informal. Porém, o happy hour de hoje tinha uma cor e um ar
diferente. O Boteco era o de sempre, os amigos eram os de sempre, mas
o clima era outro. Era carnaval.
Alí, mulheres enfeitadas,
espalhavam no ar o cheiro de perfumes afrodisíacos. Brilhos no
pescoço em colares coloridos, pulseiras e pratarias lhes enfeitavam
os pulsos e os dedos. O vermelho das bocas molduravam lábios
carnudos e desejantes. Os olhos também brilhavam, assim como os
olhos dos homens que, ao derredor, sonhavam orgias infindas.
Ao
fundo, em meio às gargalhadas e ao tilintar de copos em brindes, as
marchinhas começavam a encher o ar com uma eminente alegria,
acompanhadas por um, ainda tímido, coral informal.
E
assim...entre sussurros..., a noite começa. E o Carnaval chegou...
Hoje o dia passou rápido e a noite, sem rodeios, dava o ar da
graça com um cenário colorido... teremos uma noite diferente. A
alegria se instalara no Beco das Margaridas desde as ultimas horas da
tarde deste sábado gordo.
A balada apenas começava. As calçadas
agora já tomadas pelas mesas era o palco do carnaval. O ambiente
momino se fez nascer de vez. Agora, pessoas iam e vinham. Umas
voltavam para as suas casas, outras passavam, outras chegavam e
ficavam. Siiiimmm...realmante já era carnaval.

Na calçada em frente, alguém com colar havaiano e camisa
florida, cantarolava alto enquanto desenrolava no ar as primeiras
serpentinas. Outros mais comedidos, ensaiavam bitocas e
combinações para o “mais tarde” baquiano. Desenroladas e
atreladas aos fios elétricos, as serpentinas coloridas davam ao Beco
das Margaridas, a sua perfeita fantasia.
De repente, aos olhos
de Alfredo, o cenário do Beco se enfeita de vermelho. Era Leila que
chegava em passos lentos. Num salto alto exibindo toda a graça de
que lhe presenteara a vida. Lábios carnudos, olhos pretos e bem
abertos,cílios postiços lhes realçavam e os cabelos encaracolados
lhe escorriam pelos ombros. Vestia um vermelho com um generoso decote
que, bem colado deixava à mostra a perfeição de um belo par de
pernas e o arredondado perfeito de suas nádegas. Uma Deusa.
Olhos
nos olhos, Leila passa como quem não quer nada mas, no fundo, se faz
presente a uma ínfima distancia de Alfredo. Provocante...adocicando
o ar.
Olhos nos olhos, agora mais insistente, Alfredo provocava
uma aproximação desinteressada, porém, caliente. Conversaram
bastante. Alfredo sentindo o clima, pensou duas vezes. Melhor não
tentar... Deu de ombros...pediu a conta e se foi pra sua casa. No
caminho a insistente imagem de Leila quase não o deixa ver as ruas,
o transito. A medida que chegava em casa se lhe recobrava o juizo.
Dificil para Rosa Aline não perceber...não imaginar o que
ocorrera. Já era praxe uma briguinha por causa do Beco das
Margaridas. Porém, naquela noite, Alfredo não segurava o seu desejo
de voltar e estar com Leila. Rosa notou a sua indiferença e sem
hiato de tempo disparou:
• Conheço a sua cara de desconfiado.
Com certeza estava acompanhado e eu já imagino com quem você
estava...dizia Rosa.
Claro que eu estav com os amigos de
sempre...Alfredo respondia à meia boca, asiim...meio calado.
A
certa altura a discussão tomou outro rumo, cobranças de parte à
parte e as agressões verbais também. Os ânimos se acirraram e
Alfredo, de súbito, toma uma decisão: voltaria ao Beco das
Margaridas. Não adiantou os pedidos de “fique” e nem as ameaças
de Rosa Aline. A decisão se concretizou.
No trajeto de volta os
pensamentos se misturavam entre a ira provocada pela discussão e a
certeza de que reencontraria Leila. A paixão alimentada e tantas
vezes recolhida viera como um relâmpago. Seu coração disparara.
Por que não? Perguntava a si mesmo como que fosse uma justificativa
ao que pensava em fazer naquela noite.
Ao chegar ao Beco das
Margaridas uma ultima decisão. Na primeira oportunidade se
declararia a Leila. Imaginava não ter outra oportunidade. A briga em
casa, o carnaval, os drinks, o vestido de Leila, a boca, o perfume,
tudo era pretexto.
Os amigos ainda estavam no bar. Mesmo
desconfiados festejaram a volta de Alfredo que, atento, fazia passear
os olhos procurando por Ela em meio aos foliões. A caminho do
banheiro encontra a sua Deusa. Atrapalharam-se na passagem,
bateram-se de frente e....buuuuummmm. “ é agora ou nunca mais –
pensou...”
Investiu sem medo. Um beijo na boca carnuda selou de
vez a realização de desejos há tempos guardados. E foi um beijo
quente, molhado, em câmera lenta. A mão na nuca ajudava no passeio
de sua língua na boca de Leila. Boca na boca, Tentando roçar pernas
Leila correspondia aos carinhos enquanto Alfredo se deleitava por
aquela que lhe despertou tanto desejo.
A noite seguiu, a partir
daí, em clima de romance à la shakespeare. Mão na mão. Cadeiras
coladas, promessas, palavras doces, carinhos no rosto, por vezes mão
no ombro, por vezes mão na perna. Bitocas, línguas. Era enfim o
sonho.
O surdo continuava a sua intermitente marcha. O vai e vém de pessoas
não deixou que ninguém desse conta da chegada de Rosa Aline.
Parada, estática em frente à mesa, assistia ruborizada a mais um
beijo do casal recém-formado. Ela não podia acreditar no que via.
Mas a surpresa veio acompanhada de uma incendiada revolta. Aí a ira
e a geniosidade falou mais alto dando lugar à parcialidade.
Frente
a um casal literalmente parado e de olhos esbugalhados ela parece
calada enquanto o coração ainda lhe repete a cena que presenciara a
instantes. Num trágico rompante, Rosa puxou da bolsa uma pequena
pistola.
Naquele momento, entre os rufos da caixa de guerra e a
marcação do surdo, ecoa um som estridente, quebrando o ritmo da
musica. Rosa Aline dispara quatro tiros certeiros e fatais.
Dalí
a não mais que alguns minutos o som que se ouve não é mais o som
dos clarins de momo. Ecoa no Beco das Margaridas o som estridente das
sirenes dos carros de policias e de ambulâncias.

Agora o Beco está quase deserto. No chão dois corpos. Dois
filetes vermelhos se deslocam para o canto do meio fio. O casal está
desfeito. Uma vela para dois. O vermelho da paixão, está desfeito
em sangue que percorre o meio fio.
Rosa seguiu com os policiais,
deixando para traz as cores carnavalescas, agora tristes, enlameadas
pelo vermelho sangue que restou daquela tragédia.
O Beco das Margaridas está em silencio sepulcral. Está de luto. Ao
longe, em outras plagas, ainda se ouvia, trazidos pelo vento, o som
de um fim de noite de carnaval...
• ♫ ...é de fazer chorar,
quando o dia amanhece
e o ultimo frevo acabar
• ♫ ...Hó! quarta feira ingrata,
chegou tão depressa ,
só pra
contrariar...
(WILTON DEDÊ)
Fotos:Internet