Este eixo
vertical sobre pernas andarilhas te levarão por veredas, ladeiras e garranchos
de antigo matagal viçoso e promitente. No labirinto de calçamentos tuas bancas
armadas, as roupas dependuradas e os sacos de farinha, arroz, milho e feijão
assentados um ao lado do outro. As estrelas mandam na abóbada mais celeste do
que aquele azul banal dos dias. As noites são mais celestiais. Mais celestiais quanto
menos reveladoras, mais subentendidas e ocultas como os mistérios da nossa
ignorância. Quem sabe jamais conhecida e por isso mesmo misteriosa.
Duas coisas
se expandem nos cânions da colmeia humana: os cheiros e o vozerio. Os odores
são variados e um quase soterramento dos milhares de cheiro já impregnados na
urbanidade. Os extratos oleosos, sobre a pele ou nos cabelos se expressam de
passagem, no caminhar entre outros. Ali um pálido perfume de leguminosas, diria
que quase parente do gorgulho: da saca de arroz, a farinha da serra, o feijão
de corda com as lembranças das palhas fragmentadas nas pauladas de sua debulha.
Mas o odor
que domina a cidade é aquele de cebola e alho e parece serpentear como uma
sianinha amarela através das esquinas em todas as ruas da cidade. É bem que a
feira da corda tem aquele ranço de matéria palhenta, a agave seca com memória
do seu viço de verde na origem. Na feira da rapadura os odores de engenho
sedimentaram-se, se tornaram alicerce, muito mais duro e invariante do que a
exuberância da azáfama da engenhosidade de canas, moendas, bagaços, caldeiras,
garapas azedas, destilação de alambique, fornos, tiborna, mel e alfenim.
Frutas
verdes têm cheiro de cica. Maduras de nuvens de mosquito. Podres de lavagem de
porco. Balaios despejando fragrâncias de coentro e um si bemol de cebolinha. Estas
verduras são tão excelsas que anulam as bancadas de cenoura, beterrabas,
batatas e jerimum. Se na safra, a ousadia das copas sombreadas se projetarão na
feira com o domínio das mangas que não apenas se repete no verbo homônimo posto
que desnecessário. Os cheiros envolvem todo o prédio do mercado. Todos os
produtos foram mangados pelos frutos das mangueiras.
E que não
dirá meu corpo pedinte, tendencioso, vulnerável, tonto de tantas mensagens
ofertantes, entre microfones a decibéis, a ladainha do consumo e esta passagem
desvairada de corpos em sentido contrário como a rogar alguns decímetros de
ocupação. Perdido em mim e na multidão eis que jorra a sedução feminina. Com
seu corpo de espargir dor de amor, grilhões de arrastar pensamentos e fixar o
monobloco da unidade inseparável do imantado. Torno-me a cauda daquele cometa
no labirinto da feira.
Ei Rosa dos
Ventos. Não existe um GPS a traçar destino. Caudal daquele corpo feminino
destino algum me comove, para frente, para trás, à esquerda ou à direita. Mesmo
que seja um círculo. Apenas me resta o arrasto de uma cabeleira que é ao mesmo
tempo lucidez e loucura, um pescoço como um abismo do meu iminente despencar, ombros
que me transformam num polvo cheio de ventosas para não apenas agarrar aquela
pele que é a síntese do mundo. Ventosas para sugar o indecifrável deste desejo.
Abomino
todas as portas. Se fosse São Jorge lancetava são Pedro apenas pela função de
porteiro. As portas perversas, pervertidas, a manha do antimundo. A traição da
abertura e da liberdade que até então era plena. Inconsciente, mas suprema. E
porta fecha aquele objeto inseparável de toda a minha loucura. Aquele momento
após o qual, uma vez atendido todo caudal da minha elucubração, o mundo seria
pleno e a feira se pulverizava num monturo de sentidos. Uma vez não realizado o
sentimento os sentidos se tornam cinco isolamentos. Desconectados,
incompreendidos e insensíveis.
Esvaziado.
Não cansado. Mas desprovido. A feira morreu. É um silêncio de pilha fraca. O indistinto
do cristalino opaco. O inodoro do final de feira. E, no entanto, meu eixo
vertical há de mover as pernas por quilômetros mato adentro. Salvam-me as
papilas gustativas: um tijolo viscoso ao dente, de leite e açúcar, de esticada
narrativa do sabor, tomando gengivas, as língua, o céu da boca, a garganta e
mesmo quando desce pelo esôfago parece manter o paladar do ato de fabricá-lo.
São Joaquim
Patrício salvou-me os próximos quilômetros do meu recolhimento noturno.
Um comentário:
Hoje é dia de feira, e vc trouxe de volta esta zoada...Trouxe figuras "santas" do passado...Trouxe um tijolo perdido de felicidade.
Amei o texto!
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