A Estátua do Cristo Redentor implantada de braços abertos
sobre o cume do Corcovado quase brilha na manhã de luz destas matinas cariocas.
Brilha tanto por sua visão direta assim como pelas bordas laterais do olhar. No
sopé do Corcovado quem lá se encontra tem a imagem alongada das alturas daquela
ordem que ali implantou o símbolo.
Nesta soleira da vida quando tudo começa a acontecer, Chico
anima-se a comentar a seu respeito uma vez sabendo que certo Potiguar, morador
de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, nem sabia em qual município
nascera embora o pai ainda more por lá. Uma família nuclear definitivamente
afastada da paralaxe patriarcal do seu velho nordeste.
Chico com riso na fronteira entre o crítico e o humorístico
dizia: e eu nem conheci meu pai. Nem sei quem é o desgraçado. Minha mãe
embuchou e me teve no mato quando foi urinar numa moita. Ela veio para o Rio e
fui criado pela minha avó e tios. Aquele desgraçado bem merecia umas pedradas
da vida.
Quando o resto da família resolveu vir para o Rio, ocupou metade
de um Itapemirim. Comendo mortadela com pão. Mais que fartura e luxo sem pecado
que a rodagem me deu na vida. Antes era uns passarinhos, um tejo, algum preá,
quem sabe um peba ou algo que se mexia no chão, nas lagoas ou nos ares das matas.
É mesmo. A melhor comida é aquela que afoga a fome.
Um tempo mais tarde. Um pouco mais embaixo, mas ainda na
base do Corcovado, Rua Jardim Botânico, número 216, bloco B uma loja de
material de construção. Na rua movimentada com trombos de enfartamento um
caminhão clássico, boleia e carroceria de madeira, carga pela metade, com
metade dos pneus amassando a calçada e pessoas descarregando sacos de cimento
para suprir o estoque da loja.
Um homem negro, um pouco menos que um metro e setenta de
altura, ia da carroceria até a entrada da loja carregando de uma só vez quatro
sacos de cimento. O olhar aflito encontra o peso de cada saco marcado no papel:
25 Kg. Imediatamente o cérebro faz o cálculo da visão: ele carrega sobre a
cabeça, amassando a coluna, 100 Kg de cimento que erguerá as paredes
domiciliares desta escravidão secular.
O olhar explode nas cordas vocais enquanto as pupilas se
comunicam com ele: 100 quilos na cabeça?
Um leve balançar afirmativo e marcha para terminar a tarefa.
Eram os últimos movimentos, ele entra na loja para conferir
e transacionar a papelada em moeda ou promissórias. Enquanto isso o outro
trabalhador do caminhão se aproxima, turvo de cimento, camisa de mangas compridas
a protegê-lo da corrosão do material. Mas os pés quase haviam se transformado
num próprio cimentado.
Por último, o Redentor ainda permanece na cimeira do
Corcovado, o homem, o rosto inteiramente suado se aproxima e diz:
Já tive muito dinheiro. Tudo dinheiro ilegal e gastei sem me
dar conta. Hoje gasto com prudência o sacrifício de ganhá-lo.
E quantos anos tu tens?
Cinquenta anos!
E este peso não provoca dores no pescoço?
Doer dói. Mas a gente faz alguns movimentos e ele alivia. É
preciso desconectar-se da dor no pescoço.
Desconectar da dor de viver hoje como nas galeras romanas e
ou nas senzalas.
4 comentários:
Precisamos aprender a desconectar tantas outras coisas... Mas a dor é urgência.
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