Charles tocando Valsinha
O que tem de vida na própria vida é o conteúdo do tempo que
ela inventa. Sem possibilidades de condenações legais, embora a lei exista. Sem
julgamentos morais, embora a Moral seja da história. Sem julgamento de qualquer
espécie, embora viver em sociedade signifique a vigilância de outro.
O que vocês acabam de ouvir acima é a genialidade de um
menino precoce que no início dos anos oitenta encantava a televisão, o público
que o ouvia nas ruas de São Paulo e, principalmente, os músicos. O grande
Altamiro Carrilho achou que aquele talento tão precoce e sem mestre algum só
podia ser algo divino, explicado por uma reencarnação de alguém que chegara a
este mundo de outra experiência histórica. O Maestro Júlio Medaglia apostou que
ele seria um dos maiores flautistas do mundo e arranjou-lhe uma bolsa de
estudos para a Alemanha.
Chamava-se Charles Gonçalves e de tão surpreendente em sua
precocidade musical que recebeu o apelido de Pinguinho de Gente. Tocou com
Paulo Moura e Artur Moreira Lima, além do já citado Altamiro Carrilho. Mas eis
que o estado alterado da mente seja pelo álcool, drogas ilícitas ou lícitas,
seja que sob a miséria das ruas de São Paulo, um pai viúvo, músico e pobre que
cedo deu às ruas para os filhos exibirem seus talentos e ganharem algum trocado
para ultrapassar as 24 horas do dia.
Há quatro anos Charles Gonçalves, o Charles da Flauta foi
relembrado, objeto da curiosidade da televisão e de colunistas de jornais como
Gilberto Dimenstein tentando promover o IBOPE e extrair conteúdos moralistas,
que sejam sobre a educação pública. Acontece que Charles é gente como gente
somos nós. Gente destruída e abandonada por um modelo de sociedade que só compreende
o topo e detesta a base em que a maioria se encontra. Uma sociedade excludente que
só poderia lançar, como o fez, Charles no Crack, destroçado, morando sob tetos
de papelões embaixo do Viaduto Costa e Silva que eleva os automóveis sempre
apressados, sem olhar para os lados.
E me lembrei de Charles apenas para lembrar-lhe neste 7 de
outubro das centenas de Charles que estão com os dedos queimados pela “pedra”
em algum terreno baldio, nalguma rua deserta dos nossos bairros da periferia.
Os dedos queimados que já não tocam mais a vida, mas expõem a miséria desta
sociedade desigual cuja razão a cabe a todos. Inclusive na hora de votar e
eleger.
O Programa Fantástico da TV Globo fazendo a crônica do inevitável sem fazer a crítica do evitável com uma boa dose de cinismo entre os apresentadores e dando ao programa televisivo a descoberta que não fez, qual seja apoiar uma sociedade que joga pedras para que os jovens pobres queimem. A culpa é do Charles tal qual um Pilatos moderno aponta o dedo em direção do Gólgata.
Nenhum comentário:
Postar um comentário