QUEM É AQUELE SER HUMANO QUE VAI ALI?
Quem é aquele ser humano que anda na contramão do tempo sem lenço, sem documento e sem direção? Quem é esse que no lixo divide com as baratas, os ratos, as formigas, as moscas, a sua refeição? Ele vive sem viver, andando sozinho pelas ruas movimentadas, de tanta pressa e confusão e, no entanto, sem nenhuma assistência de compaixão. Ele não é reconhecido como cidadão. Anda fora da moda com a única roupa encardida de tanto dormir ao relento, no frio chão. Às vezes, carrega um saco com objetos estranhos de segunda, terceira ou quarta mão; carrega uma latinha para pedir algum trocado de um coração morador da cidade, chamado "cidadão". Na maioria das vezes, nem banho toma, porque na sua casa não tem água e não tem luz: o seu endereço se chama solidão.
Quem é aquele ser humano que anda na rua carregando o fardo do isolamento e do esquecimento da sua identidade existencial chamada "irmão"? Ele anda num tempo que não é socialmente necessário. A sua dor quase ninguém sabe, e é raro alguém se interessar pela ferida aberta em seu ser. A sua presença, falta ou fala não sai estampada nos jornais e revistas da moda. A sua imagem enegrecida, de tão encardida, é diagnosticada como uma grave doença sem recuperação. Ele não possui talão de cheque. Ele não tem cartão de crédito. Em verdade, poucos são aqueles que lhe dão crédito. Ele é abandonado. Ele é ignorado. Ele é evitado. Ele não é convidado para ir a nenhuma festa. Ele não é abraçado em seu aniversário, e muito menos amado, ou lembrado, nas festas e banquetes de Natal pelos seus irmãos.
Quem é aquele ser humano que vive em outro mundo dentro desse mundo dito moderno, e avançado de tecnologias, porém antigo e atrasado da Ética do coração? Ele anda vagando pelas ruas sem precisar determinar uma orientação. Ele não tem emprego, casa, teto e qualquer função na cadeia de criação produtiva-competitiva-especulativa. A sua casa é a própria carência e necessidade de tudo. A sua família é o sofrimento de pertencer a uma comunidade sem laços de fraternidade e amizade no coração. O seu caminho são passos sem destino de um corpo à espera de um descanso final, em qualquer lugar e em qualquer buraco do chão. Ele somente é reconhecido pela estatística como um número abstrato de certa população de um contexto "social" diferente. Ele não é operário, chefe, patrão ou dirigente. Ele não é engenheiro, mestre, professor, doutor, e tampouco escrivão. Ele não é visto nem como sujeito de uma relação. Ele é esquecido mesmo pela insensibilidade econômica inevitável desta tal integração chamada globalização.
Quem é aquele ser humano que não assiste televisão, não lê jornal e não escuta rádio de nenhuma estação? Ele não tem idade e nem sexo definido, porque é homem, mulher, criança e idoso sem privilégio de raça e religião. Ele não vota e nem é procurado por qualquer candidato em nenhuma eleição. Ele vive à parte fazendo parte de um todo racional que, ao se dividir, perdeu a noção de que todas as partes fazem parte de uma consciência cósmica, que está e é igual em toda e qualquer parte e, portanto, nunca se parte. Quem é aquele ser humano que passa ao lado quase como fantasma-indigente, um vivo-morto perambulando e desafiando a própria sorte da vida da gente? Ele é Deus esquecido no outro! É Cristo ignorado. É a Centelha Divina que insiste em provar que na vida humana até mesmo os excluídos, esquecidos e desassistidos recebem a Glória de Deus para desafiar a insensatez e a incerteza dos homens que buscam a sua própria glória-riqueza e, por isso mesmo, se afastam e perdem o Afeto-Pureza de Deus. É Deus em ação querendo ser tocado, lembrado e amado pelos homens mais uma vez. É Deus mostrando que a Vida transcende a morte, a miséria e a indiferença do poder político e material dos homens. É com certeza a eterna presença de Deus esperando o grande encontro no Outro.
Bernardo Melgaço
(Do livro "No Azul Sonhado")
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