D. Anfrozina , com a sabedoria que os anos lhe foram concedendo , percebera ,cedo , a implicância da filha com o marido : Sebasto. Giselda parecia uma bacurinha de pé de pilão: não deixava o homem em paz um só instante . Fuçava daqui, esperneava dali, roncava acolá. Anfrozina não morava com o casal, mas desfazia, por inteiro, a terrível fama das sogras. Sempre tomara partido do genro, talvez porque soubesse que a maior parte dos arrufos dependia da pouca tolerância da filha. Giselda, ao que parece, buscara sempre a figura perfeita de marido: íntegro, rico, romântico, viril, domesticável, sem vícios e barriga branca. Anfrozina fora a primeira a dissuadi-la de tal pretensão. O almejado ser apolínio e imaculado só existia nos livros de Mitologia. --- Santo não casa minha filha ! D. Hélder, o Dalai Lama, Buda contraíram núpcias com Deus e não com essa rafaméia aqui da terra! Você devia dar graças aos céus ter conseguido encontrar ainda um beato feito Sebasto. A opinião de Anfrozina não era muito diferente daqueles que conviviam de perto com o casal. Giselda, no entanto, não se convencia e continuava sua cruzada interminável em busca do companheiro perfeito. E a grande verdade é que a esposa não tinha lá razões para tanta choradeira e insatisfação. Sebasto não era rico, mas tinha um emprego estável de barnabé que os permitia levar uma vidazinha tranqüila e sem muitos atropelos. Era homem de casa e do trabalho, de temperamento dócil e deu a Giselda uma récua de filhos que, crescidos, assumiram o destino cigano do cearense e se espalharam Brasil afora. Beirando os sessenta, ainda tinha um fogo invejável, com muitas brasas inflamadas ainda por baixo da cinza acumulada por tantos anos. O marido só tinha um defeitozinho. Gostava de uma biritazinha diária, de queimar os dentes, mesmo assim raramente foi flagrado bêbado. Com o álcool mantinha a mesma compostura da sobriedade, apenas ficava um pouco mais palrador e extrovertido. Não se transformava em macaco, porco ou leão: virava papagaio. Giselda já o conhecera com este hábito, não comprou gato por lebre. Nos primeiros anos até que suportou a caninha do marido. Com o passar do tempo, no entanto, aumentou a implicância: vivia a reclamar pelos cantos e fazer cara de cobrador, quando Sebasto chegava mais alegre e falante. Os reclamos extrapolaram quando Giselda resolveu tornar-se evangélica. Aí o vício do companheiro tomou ares de pecado mortal e de artes do capeta. Sebasto ainda contra-argumentou : Jesus não era contra bebida de jeito nenhum, fosse assim , nas Bodas de Caná, teria transformado a água em cajuína e não em vinho. Giselda, desarmada no seu fundamentalismo, não se convencia e armava brigas que se estendiam por semanas. Vivia trombuda, amarga, sem compreender que destilar fel também podia ser pecado mortal. Já velho, em meio à saraivada inexplicável de impropérios, Sebasto foi compelido ao adultério. Arranjou uma gambiarra : uma viúva fogosa da repartição. Levou a coisa em banho-maria por uns dois anos. Ficou mais feliz e imune às implicâncias giseldianas. Um dia, no entanto, como sói acontecer, a mulher descobriu a tramóia e armou um barraco horroroso. Despiu-se de todas as lições de compreensão, solidariedade e perdão que aprendera nos cultos. Resolveu separar-se, mas foi dissimulada por Anfrozina e pelo pastor da sua igreja. Depois que a poeira sentou , chamou Sebasto que estava recolhido à casa da sogra e foi clara. Disse , com voz chorosa, que assumia sua parcela de culpa e que queria reatar o casamento. Sob duas condições apenas: que ele abandonasse de vez a viúva e mais : prometesse nunca mais pôr uma gota de álcool na língua. Sebasto estendeu os olhos para o jardim e , com água na boca, observou o cajueiro defronte à casa coberto de frutos rubro-amarelados, com o cheiro invadindo o mundo. Um manancial interminável de tira-gostos ao alcance das mãos. De língua seca, negociou: --- Tá certo, Giselda, paro de beber, mas deixe ao menos passar a safra do caju... A mulher, enraivada, sacou o temperamento velho ofídico que guardara cuidadosamente dentro da bíblia e rasgou: --- Você é um bêbado inveterado mesmo, Sebasto ! Acho que esse seu vício não tem jeito. Mas a rapariga da viúva, esqueça, viu ! Ou ela ou eu ! Sebasto, calmamente, renegociou: --- Mulher, já faz uns dois anos que estou com ela. Ela é depressiva, não posso chegar assim e acabar tudo de uma hora para outra! Tenho medo de suicídio. Preciso de um tempo ! Giselda, já exasperada, gritou: --- Um tempo, é ? Um tempo, seu engraçadinho? Quanto tempo? --- Uns quatro, cinco anos tá bom...
J. Flávio Vieira
2 comentários:
As postagens de hoje compensaram o meu dia.
Ler Zé Flávio é um imenso prazer!
Imagem e texto suculentos de bom humor. Uma viagem, na imaginação do autor.
Abs
Abraço a Socorro nossa grande poeta e blogueira
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