J. Flávio Vieira
A
atitude da Dra. Dolores me pareceu estapafúrdia, típica desses tempos sombrios
em que vivemos. Se o Sindicato saca o Código de Ética em defesa, o que me
parece mais preocupante do que o destempero da profissional, bastaria olhar o inciso
I , que abre os mesmos Princípios Fundamentais do Código : “A
Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da
coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza” ou a proibição expressa, claramente, do Art. 23 : “Tratar
o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou
discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.” E nem precisa
lembrar, aqui, o famoso Juramento de Hipócrates que a Dra. Dolores, com os
olhos marejados de lágrimas, deve ter, mão estendida, rezado na sua formatura: “Não permitirei que questões de religião,
nacionalidade, raça, política partidária ou situação social se interponham
entre o meu dever e meu paciente”. Num tempo em que os códigos éticos foram
substituídos pelo Código de Barras de que valem essas palavras ritualísticas e
milenares? A rigor , na visão estreita
do Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Sul, qualquer médico poderá se
recusar a atender um paciente invocando razões como : “Eu não atendo pacientes
pretos!”; “Eu me nego a medicar homossexuais!”; “Aleijado? mongol ? Atendo
nada! Xô ! Procurem a APAE”.
Mesmo
se nos detivermos apenas nos possíveis ou inexistentes ilícitos éticos na
conduta da Dra. Dolores é sempre bom lembrar que há preceitos acima dos simples códigos
regulatórios. A Constituição e leis federais criminalizam discriminações de
quaisquer espécies. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, já no seu
segundo artigo preceitua : “Todos os seres humanos podem invocar os
direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção
alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de
opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de
nascimento ou de qualquer outra situação.” E é sempre bom lembrar que D.
Ariane Leitão, a mãe do menino rejeitado, não se enquadra naquele perfil típico
dos que, dia-a-dia, são levados ao pelourinho pela Casa Grande : é branca,
olhos claros, deve ter plano de saúde, vem de classe média alta e transita nas
hostes políticas. Imaginem o que sofrem, no dia a dia, os negros, pobres,
nordestinos , homossexuais nos Centros de Saúde, Brasil afora!
Ao
médico não deve interessar a que partido seus pacientes são filiados, se são
honestos ou marginais, casados ou amasiados, se são budistas ou islâmicos, se
são ricos ou pobres, a não ser, claro, que esta informação tenha alguma
relevância na história clínica. Quando opero na urgência um bandido perigoso
tenho que ter com ele o mesmo desvelo que teria com um santo; o julgamento devo
remeter aos tribunais e a Deus. Somos
sacerdotes e não técnicos, somos médicos e não juízes. Todos devem ser
tratados, com o mesmo cuidado e deferência, mesmo que esta meta esteja distante
, ela tem que ser perseguida compulsivamente. No caso específico da Dra.
Dolores e do Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Sul que me parecem
cúmplices, existe ainda um agravante, o paciente que foi rejeitado é uma
criança que não tem filiação partidária e que está sendo punida simplesmente
por conta do exercício democrático dos seus pais. Hitler e Torquemada possivelmente
teriam sido mais piedosos.
Em
tempos em que a Democracia parece um
estorvo; em que a abolição dos escravos é tida como um excrescência; em que as
larvas são convocadas para curar a ferida; a atitude da Dra. Dolores pareceu
normal e até elogiável. Podem me chamar
de velho e obsoleto, demente e louco, mas é preciso sonhar neste crepúsculo com
uma aurora que já raiou e que, quem sabe, volte a encher o horizonte com seus
raios,espargindo para longe tanta e tanta escuridão.
Crato,
31/08/16
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