Apesar da homenagem recente no Clube Internacional, aonde fui
condecorado “Homem do Ano”, sinto uma tristeza profunda e não
consigo dormir. Não só a idéia da morte iminente me atormenta, mas
o destino da minha alma, a visão do inferno. Não é justo que se
reserve isso a um cidadão respeitável e com uma vida inteira
dedicada ao Brasil.
Fiz o que todos fizeram. Desde criança, procurei refletir a imagem
paterna e, usando de esperteza, cair nas graças do pai. Se havia
algo errado, os castigos iam para os irmãos menores, embora quase
sempre eu fosse o verdadeiro culpado. Ele sempre me perdoou, até
mesmo quando comecei a bater carteira. Acredito que a criança é o
pai do homem e nunca conheci o fracasso, o sucesso é mais importante
que a amizade.
No colégio ou na universidade, atento ao rumo dos ventos, tornei-me
conservador, direitista e defensor intransigente dos valores
familiares. Fui contra o Jango, vibrei com o AI-5 e identifiquei
vários comunistas disfarçados. Até hoje, não entendo como alguns
colegas escaparam. Ao sair da universidade, abracei os negócios e
sempre lutei pelo Brasil.
No tempo do milagre, entrei na política, fiz empréstimos, ganhei
concorrências e construí um patrimônio razoável. Estávamos no
rumo certo e não fosse o comunismo remanescente na Igreja, o país
seria bem melhor. Fui generoso com quem participou da repressão e
gostei de ver um guerrilheiro torturado. O castigo depura o pecador e
tenho certeza de que ele saiu dali melhorado.
Tenho saudade dos militares. Não sei por que voltaram aos quartéis
e os vermelhos estão mandando. O comunismo é indestrutível, à
semelhança do mal e do pecado. Não existe PT nem PSDB, é tudo PCB,
muda somente a embalagem. O príncipe das trevas é um cavalheiro,
alguém já disse e nada mais verdade. Povo no poder, bolsa família,
merenda escolar, direito trabalhista... Chega de assistencialismo e
atraso! Outro dia, um empregado quis me perturbar. Para servir de
exemplo, desapareceu. Nas minhas empresas não existe conflito entre
capital e trabalho.
Quase esqueço, mas também sou banqueiro. Falam mal dos bancos, mas
o acesso ao dinheiro traz progresso e felicidade. Obviamente, juros e
taxas são indispensáveis. O problema é que as pessoas gastam mais
do que podem. Uma vez, uma viúva estúpida, invadiu o meu gabinete
chorando. Não tinha mais onde morar por que executei a hipoteca de
sua casa. Outros que perturbam, são os aposentados. Fazem
empréstimos irresponsáveis e querem que a gente os sustente. Sinto
muito, capitalismo é isso aí. O banco faz a sua parte, empresta
dinheiro e o Brasil vai pra frente. São as regras do mercado.
Agora, vou bater carteira na Beira-Mar. Talvez assim eu melhore. É
um hábito antigo que Deus compreende. Veio da infância, como já
contei. Nem o psiquiatra, nem o Colégio Militar conseguiram
consertá-lo. O doutor falou que sou misantropo, homofóbico e
misógino. Gostei muito e vou consultar o dicionário.
O que me angustia é o inferno e a morte. Mas, creio na justiça
divina, tenho lugar garantido no céu. Hoje, saí novamente no
jornal: locomotiva empresarial, segundo o colunista. Por que me
preocupar com bobagem? Tenho a consciência tranqüila. Sou patriota
e cidadão respeitável.
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(*) Demóstenes Gonçalves Lima Ribeiro, médico-cardiologista,
natural de Missão Velha, atualmente residindo e exercendo o ofício
em Fortaleza-CE
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