Foi neste final de semana. As noites no sertão do Potengi já
começaram a ficar amena. Lá pela madrugada as minhas tias até usam um cobertor
para se aquecerem. Enquanto os viventes vão secando e desaparecendo nas
veredas, os açudes começam a ter suas águas chupadas pelo sol ou dispersadas
pelos ventos que de dia sopram como fornalha e à noite feito ar condicionado.
Fui visitar as minhas tias há dias que não as via. Cheguei por
lá no sábado passado e no domingo à tarde peguei a estrada no rumo de casa. Como
sempre merendas de espocar o bucho, café torrado na rapadura e coado no pano.
Doces, bolos, sequilhos, uma tapioca com a trilha do céu e uma conversa de
encher a alma feito um espelho em cuja luz a gente aparece por inteiro. Ali nos
reconhecemos até a próxima visita.
Para encurtar a história, banho de açude com umas lapadas de
uma branquinha envelhecida, uns tucunarés na brasa, mergulhos, natação e expiação
dos dias sofridos na severa vida em cima de calçamento e ruas com prisão de
ventre. Um almoço de voar ao passado e uma rede cheirosa no alpendre para viajar
em contos de fadas.
Lá pelas cinco horas sentávamos no alpendre em animada
conversa, com tia Rosinha, tia Mundinha, enquanto tia Maria se enfurnara na
cozinha preparando uma merenda do entardecer. Não demorou muito e chegou com uma
escolha maior do que o alimento do Olimpo, superior a ambrósia e ao néctar que
os deuses bebiam. Vinda do forno à lenha umas bandas de pão inteiramente
cobertas da mais pura nata, tão bem torradas que a nata estava gratinada, em
tons marrons escuro e com bolhas salientes do calor que as assou.
Enquanto o pão com nata estalava nos dentes e os goles de
café por sublime que era, juro que ouvi a lira de Apolo, a música das Musas e a
dança de Cárites. Eu não flutuava, ao contrário, era uma profunda raiz do solo
em que minhas tias viviam. Seus acolhimentos, os lençóis cheirosos, a travessia
entre o cotidiano e o milagroso, de uma tarde na companhia delas.
Lá pelas tantas, tia Rosinha deu notícia de algo que a
intrigara numa notícia lida na internet.
- Pois não é mulher. Elas se separaram depois de cem anos de
casamento.
A primeira impressão é de que tia Rosinha falando para tia
Raimunda fugia ao seu habitual e nesta ocasião falava por metáforas. Não era o
estilo dela e desviei a atenção do pão com nata para o que ela dizia.
- Foi! A Bibi enjoo do Podi e não quer mais saber dele.
- E foi mesmo?
- Era um casal perfeito. Parecia feitos um para o outro. Há
cem anos que viviam maritalmente e agora vivem separados.
- Menina! E o que é que aconteceu?
- Ninguém sabe. De repente a Bibi abusou do Podi e meteu-lhe
os dentes nas costas. O coitado do Podi apanhou feito um jumento velho
carregando lenha. Foi preciso que duas pessoas os separassem.
Eu me concentrara inteiramente na conversa das duas. Queria
saber quem era Bibi e Podi. Se contasse a vida de cem anos como casal os dois
deveriam ter para mais do que isso de idade. Não me contive e perguntei a idade
deles:
- São da mesma idade.
Conheceram-se desde novinhos. E quando se separaram já tinham perto dos 115
anos.
Nisto tia Raimunda perguntou se havia uma outra pessoa na
vida do casal.
- Não! De repente a Bibi tomou vontade de ser solteira e
hoje vive sozinha. O Podi foi para outro lugar. Quando os homens viram, a Bibi
atacou o Podi mordendo o casco dele.
- Casco? – Eu quase gritei.
- Sim meu filho. São duas tartarugas de um zoológico da
Áustria. Mas os tratadores já estão arrumando um jeito de fazer a conciliação.
E acham que vão conseguir, pois as tartarugas não costumam se separar depois de
tanto tempo juntos.
No domingo quando botava minhas coisas em cima da camionete
me despedi das tias assim como se me separasse da minha própria alma. Mas
imaginei que somos como as tartarugas: nunca nos apartamos dos nossos.
3 comentários:
Eita, Zé do Vale, confesso que estava com saudades das Tias High Tech. Adoro essas três velhinhas antenadérrimas com o mundo moderno.E o melhor: sem perder a pureza, a leveza e a beleza sertanejas de suas almas; sem contaminar a água do açude, o verde das plantações, o café puro adoçado com rapadura e com afeto.
Isso é sertão, isso é SER TÃO integradas com a Natureza, comungadas com o Cosmo.
Bom dia!.
Acabo de chegar da casa de Dona Almina, lugar onde não falta nata, boa prosa, e um jardim botânico. Lembra de certa forma o universo das "tias".
Conversa sobre o trivial e ocorrências de fatos sociais.
Neste final de semana, um desastre que roubou a vida de pessoas conhecidas e caras. Partiram Seu Modesto e esposa, no mesmo dia.
Deus respeitou a união de tantos anos?
Doi demais para quem fica. Nossos sentimentos à Germana, filha do casal, que neste momento ainda reza pela recuperação do filho.
Eita coisinha pra mexer com os nossos sentimentos... A perda de pessoas queridas. E, como se não bastasse, a viagem inesperada ou esperada dos nossos conhecidos.
Quem se prepara pra morte, vive a vida!
No começo do conto de Zé do Vale achei pouco provável um casal durar tantos anos, e ainda com força pra morder o outro, viver sem o outro.
Lembro aquela música de TOM: "é impossível ser feliz sozinho..."
(O resto é mar!)
Queria terminar a prosa dizendo ao doutor escritor que, no sertão do Crato, pertinho de Potengi, temos saudosas guloseimas... É só chegar!
Abraços
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